sábado, 21 de abril de 2012

ANENCÉFALOS

Favor usar sem moderação

Acabo de voltar do banheiro e, pelo que pude constatar, não pertenço ao gênero que dá a luz. Assim, antes que alguém deseje desqualificar minha opinião sobre a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos, gostaria de lembrar que nove dos onze ministros do supremo também são homens. Portanto, mesmo que me falte a toga, lá vai meu pitaco.
            “Pedaço de mim” é talvez a letra de música mais triste composta em Língua Portuguesa. É tão triste que, se não fosse tão bonita, não valeria a pena ser ouvida. Nela, o soberbo Chico decreta:
“Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu”
            Mais triste que a música, só mesmo a realidade. Imagine inflar o ventre e produzir o leite do filho que vai morrer. Imagine ver os contornos e escutar o “wuá-wuá” cardíaco no ultrassom e saber que aquela criatura não há de vingar. Que fazer? O mínimo. Que a mãe escolha a hora e lugar do revés do parto. Que a mãe arrume o quarto do filho que já morreu na hora em que bem entender.

domingo, 8 de abril de 2012

SEU ROQUE TAMANINI E AS RAÍZES DO BRASIL

Seu Roque me fez lembrar deste livro fundamental...

Cobertos de fuligem e suor, nossos irmãos do norte forjaram a modernidade à base de carvão, aço e vapor. Enquanto isso, abaixo do equador, insistíamos em adoçar o mundo  a base de cana e músculos africanos. No norte, homens como Benjamin Franklin, James Watt e Lavoisier tomavam choques, faziam fumaça e fediam a enxofre para fundar as facilidades do mundo moderno. Por aqui, papai descia o relho em "seus pretos" enquanto o filhinho vestia gravata de cetim e ia para as universidades da metrópole bebericar vinho do porto e tecer a labiríntica burocracia do estado-mamute que nos atola até hoje.
            O célebre historiador Sérgio Buarque de Holanda, pai do não menos célebre Chico, já denunciava este bunda-molismo, esse “nojinho” de fazer coisas com a mão. Para ele, o brasileiro sempre achou inferior o trabalho mecânico. Bonito mesmo é papel. No seminal “Raízes do Brasil”, o grande Holanda chamou esta lamentável faceta da cultura brazuca de “bacharelismo”.
            Mas você há de perguntar: porque tamanha fúria sociológica? E mais. O que isso tem a ver com o Professor Roque? Explico, explico. Fiquei chateado quando soube, com certo atraso, que Seu Roque Tamanini morreu. Seu Roque foi meu professor de desenho técnico, marcenaria e trabalhos manuais. Seu Roque me ensinou a desenhar um parafuso em projeção ortogonal. Seu Roque me ensinou a instalar dois interruptores e uma lâmpada em paralelo. Ensinou a fazer um cabo de rodinho a partir de um toco de pinus. Enfim, ensinou tudo isso e muito mais. Hoje pouco lembro dos diagramas elétricos e nem sei se um parafuso se aperta girando para a esquerda ou para a direita. Não interessa, não interessa. O fato é que eu e muitos outros ex-moleques somos menos bunda-moles por causa do Seu Roque.

domingo, 1 de abril de 2012

HARRISON FORD, MELANIE GRIFFITH E A MAIOR FELICIDADE DO MUNDO


Um filme divertido num dia muito, muito feliz

A enfermeira soltou um único pedaço de fita crepe que mantinha o pequeno pacote coeso e abriu o lençol. Neste momento, o sangue faltou às minhas pernas e apoiei a testa no vidro. Foi então que, através das lágrimas e do hálito condensado, eu vi você pela primeira vez. Como alguém que faz uma longa viagem e fica muito tempo na mesma posição, vi você alongar braços e pernas enquanto o peito subia e descia para encher os pulmões com aquela novidade chamada ar. Seu urro da vida fazia o curativo do umbigo balançar. Como Jacques Cousteau, fiz um OK interrogativo para a enfermeira, que me respondeu sorridente com um OK tranqüilizante enquanto fechava a cortina. Fim do primeiro ato.
            E então, antes do amor, veio o pânico. Tem cérebro? Será que respira? Será que escuta? Será que enxerga? O coração bate direito? O intestino funciona? Tem dez dedos nas mãos? E nos pés? Porque um curativo tão grande no umbigo? Em casa, o pânico persiste. Mamou direito? Arrotou? Mijou? Cagou? Está limpa? Tem calor? Tem frio? Quer dormir? Quer acordar? Porque chora? Tem cólica? Visitas, por favor, Olhem de longe e nem pensem em pegar no colo. É bom nem entrar no quarto. Confesso, confesso. Foram cinco meses de pânico. Cinco meses sem amor. E foi então que tudo mudou.
            Era um daqueles feriadinhos providenciais de quarta-feira, sem emenda com o fim de semana. Deitei-me no tapete da sala e tirei a almofada do sofá para apoiar a cabeça. Na sessão da tarde, passava o divertido “Uma secretária de futuro”, com a ex-bela Melanie Griffith e o eterno Indiana Jones. Acomodei você sobre meu peito, de bruços. E então, enquanto Sigourney Weaver quebrava o pé, caímos no sono. Uns trinta, quarenta minutos depois, despertei assustado com o plim-plim que anunciava o fim do intervalo comercial. Suas mãos pressionaram levemente meu peito enquanto você levantou vacilante o cabeção para me fitar com seus imensos e narcotizados olhos azuis. Babando profusamente na minha velha camiseta “Farma USP Ribeirão”, você abriu um adorável sorriso banguela e, exausta do esforço, desabou novamente num sono profundo.
            Com cuidado, levantei-me do chão sem que você acordasse. Fui ao quarto e pus você no berço. Sorri ao ver a marca da dobra da minha camiseta impressa na sua bochecha branquinha e voltei para a sala. Harrison Ford cravava um beijo apaixonado em Melanie enquanto eu pensava: pode alguém ser mais feliz que eu? E foi assim, minha filha, que eu nasci para você.