Às vezes é preciso exorcizar demônios. Já disse um velho e superestimado filósofo que o inferno são os outros. Bom, se o inferno são pessoas, os demônios são memórias. São flashes de memórias vivas de momentos desagradáveis que teimosamente resistem à tentativa de sepultá-los no aterro sanitário cerebral. Anteontem, o pior dos demônios me atacou durante o banho. Explico.
Meu pai morreu oficialmente no dia 12 de agosto de 2010. Oficialmente, mas na prática ele se esvaiu para sempre na madrugada do dia 8 do mesmo mês. Estávamos eu e ele assistindo a uma luta na TV. Como sempre, desde que me conheço por gente, eu deitado no tapete e ele sentado em sua poltrona preferida, com os pés descansando em uma das cadeiras da mesa de jantar. Suas últimas palavras “Não gosto deste vale-tudo. Muito violento”. Retruquei que aquela era a enésima vez que ele ficava de madrugada comigo assistindo a essa "violência". Silêncio. Em seguida ele se vai. E foi assim.
Do chão vejo sua perna esticar e dar pequenos coices patéticos no ar. Levanto-me intrigado e vejo seu rosto imóvel fitar um ponto além da tela. Fico de frente para ele e chamo alto seu nome, enquanto estapeio seu rosto recém-barbeado. E então vi. Seus imensos olhos azuis arregalaram-se. Vi suas pupilas dilatarem. Finalmente, sua prótese dentária inferior se solta e sua cabeça desaba, fazendo o queixo colar no peito. Com alívio, verifico que os olhos enormes estão cerrados. O alívio dura pouco, pois percebo que sua respiração é funda e difícil. Aterrorizado, percebi que o homem que me pusera no mundo se fora. O resto é uma breve passagem pelo hospital e o funeral.
Isso faz mais de seis meses, o demônio só me assaltou agora, durante o banho como já disse. Eu fechava os olhos para evitar que o xampu ardesse meus olhos e então a imagem de imensos olhos azuis midriáticos, me atacou. Mas o demônio não são imagens, são memórias. Junto com os olhos, veio a mesma sensação de terror e perda que havia sentido meses atrás. Fecho a torneira, enxugo tudo e saio do banho, arrasado. Exatamente como se tivesse perdido meu pai já o tendo perdido uma vez.
Acometido por uma crise aguda de saudade, abro uma gaveta esquecida e encontro a velha foto emoldurada. Ela mostra um time de futebol. O garoto de braços cruzados, porte imponente e invejável topete têm uma expressão séria e, tal como se fazia antigamente, não fitava a câmera. Ao contrário dos outros, veste camiseta de mangas compridas. É o goleiro. Chorei profusamente de alegria. Basto o consolo de saber que a vida que se foi foi uma vida vivida. Sai demônio, sai deste corpo que não te pertence. Que no lugar fique agora o goleiro altivo, defendendo infinitas bolas no meu inconsciente.