domingo, 29 de janeiro de 2012

NELSON RODRIGUES 2012 - UMA HOMENAGEM AO ANJO PORNOGRÁFICO

O gênio, martelando sua Remington
com os indicadores

Uma flor de menina

            Dirce era uma flor, um doce de menina. No auge de seus dezesseis anos, tinha longos cabelos pretos, lisos e uma pele de porcelana. Magra e elegante, tinha os modos de uma princesa. Talheres, bombons e lencinhos de seda ela segurava usando sempre as pontas dos dedos. Muito nova e ingênua, bastava uma fita de romance no cinema para que ficasse de suspiros pelos cantos da casa. Sonhava com um marido carinhoso, que lhe beijasse a testa antes de sair e que lhe trouxesse flores ao chegar do trabalho. Nos dias em que ficava assim, área, era mais linda ainda e a mãe sempre lhe dizia, carinhosa:
- Volte para a Terra, minha filha!
            Nos chás promovidos pela mãe na grande casa em Laranjeiras, as tias não cansavam de comentar entre uma fatia de bolo de fubá e um cálice de Porto:
- Linda! Um biscuit!

Um pai muito severo

            O pai, Dr. Veiga, era um sujeito distinto e respeitado no meio jurídico. Especialista em direito de família, era um guardião moral daqueles que moravam naquela casa, e em especial da filha predileta – Dircinha. Dizia sempre que a virtude de seu lar é que lhe dava forças para suportar as vergonhosas disputas entre pais, filhos e irmãos que era obrigado a mediar dia após dia. Sem tirar o charuto da boca, costumava dizer que tinha que ser muito homem e muito direito para sequer olhar para Dirce. Para namorar, só com sua aprovação. Certa vez, a menina se engraçou com um vizinho. Pediu que a mãe intercedesse, perguntando ao Dr. Veiga se ele consentiria que o menino lhe fizesse a corte.
              Respondeu, seco:
- Ouvi dizer que joga sinuca a dinheiro. Não serve.
           E Dirce, com muita paciência, só dizia “sim senhor”. Outro pretendente, outra interseção da mãe e outra negativa:
- Muito pobre. Não serve.
           Outros dois pretendentes, outras duas interseções da mãe e outras duas negativas do pai. E a menina, muito doce, sempre as acatava com santa resignação. Um dia, Dircinha conheceu um moço belo e com um físico de Victor Mature. Era direito, de boa família e o melhor – era louco por ela. E ela era louca por ele. Feliz da vida, pediu que a mãe intercedesse novamente junto ao Dr. Veiga.
         O velho, embriagado pelo poder de veto, cravou:
- Não serve
            Desta vez, a menina retrucou:
- Não serve porque?
- Não serve porque não serve, ora bolas!
- Mas porque não serve?
- Não serve porque eu disse que não serve e ponto final. Cale a boca senão parto-lhe a cara, estás sabendo? Parto-lhe a cara!
            Dirce fuzilou o pai com o olhar, não disse mais nada nem derramou uma lágrima. Apenas deixou a sala.

O sumiço

            No dia seguinte, à mesa do café, a mãe aflita dá a notícia ao velho:
- Não está no quarto, não está no banheiro, na cozinha ou em lugar algum. Sumiu!
- Como sumiu?
- Sumiu, ora essa! Vai procurar tua filha, homem!
            Foi direto à casa do rapaz:
- Por aqui ela não passou.
            Bateu de porta em porta, em todas as casas da rua e nada. Chamou a polícia, colou cartazes nos postes. Nada. Passou-se uma semana nesta busca frenética sem pista alguma do paradeiro da filha. Passado este período, já pensava o pior. A própria polícia já dizia que, àquela altura, já devia estar morta, em alguma cova rasa na mata da Tijuca. Desconsolado, voltou ao trabalho.

A última marmita

            No escritório, liga o computador e abre o Gmail. No alto da lista, um e-mail direcionado a ele e a todos seus clientes. Clica, e no corpo da mensagem, há apenas um link para “www.dircinha_laranjeiras.blogsafadas.com.br”. Clica novamente, agora no link. E então, seu mundo veio abaixo. O site mostrava uma foto da filha, nua, numa pose lasciva. Estava atracada com um negro enorme cujo rosto estava borrado por um efeito ordinário de photoshop. Acima, lia-se:
“Bem vindos ao blog da Dircinha!
 Cada dia uma foto quente
 com um cliente diferente”
            Alucinado, o pai correu em direção á janela e atirou-se do décimo andar. Embaixo, a mulher lhe trazia a marmita e pode ver os últimos espasmos do marido espatifado na avenida.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

O CAMINHÃO BASCULANTE E O TABLET CHINÊS

Um brinquedo muito, mas 
muito chato mesmo...
Parecia uma boa idéia, mas era um brinquedo um pouco caro. Foram precisos meses de insistência e irritante manha infantil para consegui-lo. Vencida pelo cansaço, alguns dias depois minha mãe me entregou um pacote com o indefectível papel de embrulho da “Casa Arradi”. Com volúpia, rasguei aquela papelada toda e abri a grande caixa para, já de cara, ter a primeira decepção. Pilhas não incluídas. De joelhos, puxei a barra da calça do meu paciente pai: “Dez cruzeiros, pelamordedeus!”. Voei para o Bar do Seu Galvão e comprei duas Rayovac amarelíssimas. Agora meu caminhão basculante estava pronto para funcionar. Caminhões à pilha existiam muitos, mas nenhum como aquele. No teto da cabine do possante havia uma série de botões para direcionar o brinquedo – esquerda, direita, parar, levantar a caçamba e ir em frente. A graça durou nem quinze minutos. A verdade é que o brinquedo era um verdadeiro saco. Em tempos pré-controle remoto, era preciso acompanhar o movimento do carrinho e abaixar toda a vez que quisesse mudar seu rumo. Cansado daquele sobe e levanta, desliguei o irritante brinquedo, amarrei um barbante nele e saí pimpão pela Rua Riachuelo. Nunca mais ele funcionou movido à pilha.
Mas só contei a história deste caminhãozinho imbecil porque recentemente fiz uma compra que me provocou frustração semelhante: um tablet. Quando o aparelhinho chegou pelo correio, fiquei com a boca cheia d’água, imaginando rechear sua memória com uma infinidade de ebooks. Nunca mais eu gastaria um tostão com os jurássicos livros de papel. Imediatamente carreguei a bateria do meu “made in china” (obs.: não. Não era um Ipad) e passei uma madrugada aprendendo como alimentá-lo. Coloquei clássicos, biografias, Saramago e até uns bons suspenses de Stephen King. Depois de toda esta maratona tecnológico-literária, fui praticar meu esporte favorito: ler no banheiro. E foi então que veio a frustração. Acomodei-me para, como dizer...fazer minhas abluções e apertei o “power”. Durante uns dois minutos, a telinha exibiu “Android 2.1”. Quando finalmente pude abrir o ebook, já era tarde demais. O fato é que agora meu tablet chinês está guardado no armário da sala, junto com o espremedor elétrico de laranja e faca elétrica. No banheiro agora, só papel. Para tudo.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

NOSTRADAMUS NA RUA PIRACICABA

Nostradamus, o cara que adora jogar Angry Birds

     O ano novo começou com um desejo estranhamente banal. Biscoito de polvilho. Quando raiou o novo ano, preparei o primeiro café de 2012 e o aroma sensacional que sempre desponta desta frutinha maravilhosa despertou meu apetite para o quitute crocante. Sai para o dia nublado com destino à padoca e, mal havia caminhado um quarteirão pela rua Piracicaba, vi a estranha figura sentada junto ao muro dos fundos da concessionária Chevrolet.
   À primeira vista, era um típico mendigo. Calça e camisa folgadas e imundas. Cabelos e barbas muito compridos, ensebados e piolhentos. Calçava havainas (sempre esta sandália fatal) muito gastas e praticamente aderidas aos pés enegrecidos cujas unhas estavam arruinadas pelos fungos. Mas bastava uma observação um pouco mais atenta para perceber que ele era muito mais que um simples mendigo. Ao invés do tradicional cobertorzinho maltrapilho, ele se acomodava sobre o mais autêntico tapete persa. Ao seu lado, uma garrafa de Johnny Walker Gold label jazia pela metade. Em seu colo, via-se um Macbook Pro de dezenove polegadas onde brilhava a luzidia maçã de Steve Jobs. Estes luxos anacrônicos por si só já atraíram minha atenção, mas fiquei mesmo de queixo caído quando reconheci a figura. Havia visto muito History Channel durante as férias e percebi que aquele senhor era nada mais nada menos que Michel de Nostredame, mais conhecido como o profeta Nostradamus. Atravessei a rua e segui em sua direção.
            Ao me aproximar perguntei-lhe se estava tudo bem e ele, muito simpático, disse que sim. Em seguida quis saber por que tão eminente figura estava em tão miserável condição e ele me assegurou que era por pura opção e que adorava aquele jeito vagabundo de ser, afinal de contas havia sido ganhador da Megasena da virada do ano de 2010 e não precisava viver daquele jeito se não quisesse. Disse ainda que sua figura e cheiro desagradáveis afastavam os aproveitadores e garantiam seu anonimato. Assenti com a cabeça dizendo que compreendia, mas que não poderia deixar de importunar tão famoso vidente sem solicitar algumas profecias. Do chão, ali mesmo onde estava, ele apontou o indicador em minha direção e, muito sério, disse que me daria duas: uma sobre o Brasil e outra sobre o mundo. Mas eu tinha que prometer que o deixaria em paz após as revelações. Excitado, disse enfaticamente sim. E ele começou:
            “No Brasil, as chuvas vão trazer os morros abaixo. Casas serão soterradas e famílias inteiras perecerão. As emissoras de tevê vão transmitir imagens da devastação, com closes em geladeiras e bichos de pelúcia enlameados. Depois de horas de escavação, um coitado vai ser encontrado com vida sobre os escombros e vai ser apresentado no horário nobre como o “milagre da vida” em meio aquela devastação. No mundo, um homem bomba vai explodir em algum lugar público e levar consigo alguns azarados que não tinham nada a ver com a paçoca. Horas mais tarde, a Agência de notícias Reuters vai apresentar um vídeo em que um grupo terrorista assume o atentado e anuncia que o fanático explosivo fez aquilo em nome de deus e que agora ele estava muito bem obrigado, curtindo o paraíso com setenta virgens”
            Olhei desapontado para Nostradamus e disse que estava esperando algo menos previsível, do tipo “O Corinthians vai ganhar a Libertadores da América?”. Visivelmente irritado e sem tirar os olhos da tela de seu Macbook, o velho profeta disparou:
            - Olha meu amigo, eu só vejo o futuro. O que você está querendo é lá com Santo Expedito, nas Sete Capelas. E agora me deixa em paz que eu cheguei no nível sete de Angry Birds...

domingo, 1 de janeiro de 2012

O CRAQUE NUNCA TOMA AULA DE FUTEBOL

O bom jogador Neymar fazendo
o irritante "coraçãozinho" para as fãs
           
 A cada espirro nascem no Brasil pelo menos uns quinze bons jogadores de futebol. Outro dia, enquanto caminhava pela mata de Santa Tereza, sacudi uma árvore muito alta e caíram seis bons jogadores e dois sagüis. Cada time da primeira divisão do campeonato brasileiro tem pelo menos dois, senão mais. O bom jogador é tão comum que me dá vontade de bocejar. Agora, o craque é outros quinhentos cruzeiros. Há entre o bom jogador e o craque uma distância de cerca de doze mil quilômetros, com dois desertos, um vale e uma cordilheira no meio. O craque, ao contrário do jogador competente, é tão raro quanto a dália secreta rodrigueana. Ver o craque em ação é um privilégio, ver dois ao mesmo tempo é tão improvável quanto gravar o canto do uirapuru no cruzamento da Getúlio Vargas com a Nove de Julho. Mas no sábado, dia dezoito de dezembro de dois mil e onze, as oito e trinta, horário de Brasília, todos tivemos esta oportunidade.
            Messi, o craque chocado na Argentina e criado nas divisões de base do Barcelona, e Neymar, o topetudo cem por cento Vila Belmiro. Na terra do sol nascente, o campo era os dois mais vinte coadjuvantes. Dez minutos de partida e o que vimos foi a ameba catalã fagocitar a pobre bactéria santista, e o resto é história. Durante noventa constrangedores minutos, o incrível Barça nem tomou conhecimento do Campeão das Américas. Envergonhado, eu me encolhia na poltrona. Pizarro, o conquistador, foi mais condescendente com o imperador asteca Atahualpa. Mas para meu desgosto completo, o pior ainda estava por vir nas entrevistas.
            Como se ainda fosse um moleque das categorias de base, um humilhado e racional Neymar falou a verdade: “Tivemos uma aula de futebol”. Meneei a cabeça da esquerda para a direita, com as mãos nos olhos para esconder minha vergonha. Eu não queria a verdade. Eu queria ver uma jaguatirica acuada, esbravejando. Em campo, eu queria ver Neymar - perdendo de quatro a zero, vestir um quimono muito branco, pegar a bola no meio-campo e desembestar para a área inimiga gritando “Tora! Tora! Tora!”. Pode não ter sido seu melhor dia em campo, mas seu conformismo foi digno de um bom jogador.