domingo, 25 de setembro de 2011

CAFÉ, EU TE AMO

As cinco e quarenta e cinco da manhã, o alarme do despertador soa como as trombetas que anunciam o fim do mundo. Algum gênio do mal projetou o infame eletroeletrônico de modo a tornar o desligamento de seu berro maldito tão complexo que se faz necessário sentar na cama para encontrar o minúsculo botão “off”. Imediatamente aliviado da tortura auditiva, mas irreversivelmente acordado, olho para o berrante display verde onde os números enormes anunciam: “Cinco e quarenta e seis”.
            O quarto continua tão escuro quanto estava à hora em que me joguei na cama de braços abertos tal qual o Cristo Redentor. Automaticamente sigo para o banheiro, desviando inconscientemente das meias, sapatos e havaianas dispostas pelo caminho. Acendo a luz e recebo a violenta chicotada de fótons na retina. Suporto a dor com hombridade e encaro a criatura devastada no espelho. Os fios que restam na cabeça parecem um bando de suricatos em alerta. As dobras dos lençóis estão fielmente carimbadas nas têmporas e os olhos têm um “quê” asiático. Os beiços estão inchados e é possível sentir e ver, saindo da boca, um hálito pestilento e um rastro de baba seca craquelada, parecido com os leitos  vazios dos rios temporários do semi-árido brasileiro. Fico contente em ver que o abdômen parece menor e crio a primeira teoria do dia: “Ficar na horizontal por mais de cinco horas espalha mais a gordura corpórea, dando a impressão de que a barriga é menor”. Apoio as duas mãos na pia, encolho os ombros e dou um suspiro tão longo quanto há de ser meu dia. Eis então que tenho a idéia brilhante. A mesma idéia brilhante que tenho diariamente há décadas: uma xícara de café.
            Giro os calcanhares e vou até a cozinha. Fervo dois copos de água enquanto visto o porta-filtros com um Melita 103 cujas bordas foram carinhosamente dobradas. Encaixo tudo na boca da garrafa térmica e acrescento duas colheres de sopa bem grandes de pó. Neste ponto, a água já ferveu e então a mágica começa. Mal acabo de verter o fumegante solvente universal sobre o material negro e o familiar aroma já começa a lubrificar meus neurônios. Impaciente, não espero nem acabar o processo de filtração para já encher minha caneca. Quinze gotas de zerocal. O primeiro gole e a solução de todos os problemas do dia começam a espocar na minha mente. Depois da primeira caneca, tomo um banho rápido e me vejo frente ao espelho mais uma vez. Nem sinal do monstro de dez minutos atrás. Enquanto escovo os dentes, constato que, de cabelos domados, até que não pareço tão careca. Na verdade, tenho é uma testa muito alta que parece combinar com os olhos verdes e com o grande nariz romano. Os sulcos impressos pelos lençóis já não são mais visíveis, pois minha pele ainda é suficientemente elástica para retornar à sua forma original rapidamente. Faço as pazes com meu rosto, mas não com a barriga. Vinte minutos na vertical bastaram para o tecido adiposo voltar para os quadris. Mesmo assim, sigo contente, pois isso é mais um ponto a favor da minha teoria.
            Visto calça, camisa e sapatos. Ponho a mochila nas costas, meu escritório portátil. Mesmo de dentes escovados, não resisto. Esvazio a garrafa térmica. Só mais um golinho, sem adoçante mesmo. Nestes últimos instantes antes de sair de casa, olho para o belo anel negro contrastando com o branco da porcelana no fundo da caneca e penso. Café, você é a mais sutil de todas as drogas. Você torna as manhãs tão mais fáceis! Eu te amo, Café. Não importa quão amarelos fiquem meus dentes ou quantos furos você faça em meu estômago. Eu nunca vou te abandonar.

domingo, 18 de setembro de 2011

NOTAS TURCAS I OU DUAS VEZES ENGANADO PELO IDIOMA

Entrei em casa suado e faminto, com minha bola kichute número 5 embaixo do braço. Na cozinha, vejo o vapor da panela de pressão e minha adorável tia Ana Maria segurando um garfo grande como o tridente do capeta com uma escancarada língua bovina espetada na ponta. Duvidando da possibilidade de que aquele órgão improvável venha a ser meu almoço, lanço a pergunta retórica:
- O que é isso?
           Despeitada, minha doce tia retrucou. “Língua de boi”. Dei a tréplica. “Eu é que não vou comer essa coisa”. Entrei, tirei meu bamba, lavei a mão no banheiro e fui à mesa. Nem sinal daquela amputação horripilante. No lugar, uma travessa com um espesso molho de tomate com azeitonas e pequenos pedaços roliços de uma carne tão macia que desmanchava só de olhar. Nem uma palavra, minha tia faz o meu prato. Como tudo com pão e solto o elogio:
- Que delícia! O que é isso?
- Idioma.
- Sensacional, bota mais um pouquinho aí para mim.
            Antália, 7 de setembro de 2011. Saio da palestra faminto e doido para descobrir os exóticos sabores da Turquia. Encho meu prato com diferentes e impronunciáveis formas de berinjela e com um cereal meio arredondado e bege. A plaquinha de identificação da travessa diz “Pilav”. À mesa, encho meu garfo com o tal Pilav e sinto um muito familiar gosto de arroz. À noite, já no hotel, instigado pelo sabor conhecido e pela sonoridade gostosa da palavra, digito “Pilav” no Google tradutor. Eis a resposta: arroz. Pela segunda vez na vida, fui enganado pelo idioma.

domingo, 11 de setembro de 2011

FRANK FAZ TODA A DIFERENÇA

Rapaz, se tem uma música que é capaz de me emocionar, essa música é “My way”. E faz tempo que ela tem esse poder sobre mim. Desde 1980, para ser preciso. Nesse ano, Frank Sinatra veio ao Brasil e fez um show no Maracanã que a rede globo anunciou com um estardalhaço tão grande que até um pirralho de oito anos como eu ficou curioso para ver. E foi mágico. Claro que eu não fazia idéia de quem era Sinatra, mas digo que foi mágico pela reação que ele causou em meus pais. Sentados à velha mesa de jantar e com olhos úmidos, os dois entrelaçaram as mãos sobre o tampo de fórmica, cantarolaram o refrão e enrolaram um lá-lá-lá no restante da letra. Pela primeira vez na vida, percebi que eles eram homem e mulher antes de serem meu pai e minha mãe.
            Muitos anos depois, numa aula de francês, descobri que “My way” era na verdade uma versão de um clássico da chanson francesa intitulado “Comme d’habitude”. Na aula, enquanto escutava Mireille Mathieu cantando a “My way” francesa e fazia a tradução da letra, percebi que ela tratava do tédio de uma relação onde tudo era fingimento, onde o amor já era. Muito diferente da letra americana, onde um cara faz um balanço de sua vida e chega à conclusão de que, apesar de ter dado umas vaciladas, no final das contas ele fez tudo que devia ter feito. E do jeito dele.
            Hoje, enquanto ia à padaria escutei no rádio Salomão Schartzman apresentar, com sua voz grave e deliciosamente narcótica, uma tradução simultânea de “My way”. Enquanto comprava uma bengala, dois litros de leite Fazenda Bela Vista light e duzentos gramas de muçarela tentei decidir entre a versão francesa e a americana. Qual a mais bonita? Mais tarde, e já em casa, abri minha gaveta de vinis de estimação, assoprei a velha bolacha do Sinatra e botei para rodar. Não há mais dúvida. Frank faz toda a diferença.

domingo, 4 de setembro de 2011

RESPEITEMOS O LADRÃO

O ladrão é aquele que rouba. É aquele que se apropria indevidamente de alguma coisa que definitivamente não lhe pertence. Ele prefere dinheiro, que tem maior liquidez. O ladrão e sua atividade, o roubo, dependem da prosperidade daquele que é roubado. Via de regra, se o roubo não estiver associado a alguma violência, o sujeito roubado supera emocional e materialmente a perda em questão de dias.
            De volta aos noticiários, a corrupção é outra atividade ilícita que muitas vezes é confundida com roubo. Para detrimento do ladrão, mais do que confundida, a corrupção é muitas vezes chamada de “Assalto aos cofres públicos”. Absurdo. Eis onde quero chegar. Chamar um político ou qualquer servidor público corrupto de ladrão é ofender o ladrão. Segue-se a explicação.
            Para melhor defender meu argumento, é preciso antes inventar uma figura quasi-borgeana: o Alvará. O Alvará é o documento público que contém todos os documentos públicos. Todo certificado, certidão, concessão, licitação, liberação, selo, atestado, carimbo, assinatura, rubrica, protocolo, processo, relatório, requisição, requerimento, comprovante, recibo, multa, vale, diploma ou qualquer outra benção que o Estado precise emitir para desembaraçar sua vida está contido no Alvará.
            Em algum momento da vida, nossa prosperidade esbarra na necessidade do Alvará. Sem ele não existimos e nada produzimos. O corrupto tem plena consciência dessa necessidade e tudo faz para valorizar a emissão do Alvará. Há de se gerar demanda, gerar uma pilha de pedidos para poder burlar, uma fila para poder furar, um jantarzinho para azeitar relações. Tudo obviamente, à troca de um favorzinho, de uma garrafa de vinho. Ou de uma mala de dinheiro, talvez. Eis então a desgraça da corrupção. Para que o corrupto prospere, é preciso que ele asfixie até a quase morte a prosperidade geral. Tudo há de ser difícil para que facilidades possam ser negociadas, mesmo que para isso nada funcione. Respeitemos pois, o ladrão.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

BEATIFICAÇÃO PARLAMENTAR

Bom dia, meu nome é Belzebu. Desde que nasci sempre fui o cão. Enquanto saía da barriga da minha mãe, arranhei seu útero só para escutá-la urrar de dor. Foi só nascer meus primeiros incisivos que eu arranquei o mamilo materno esquerdo. Preferia seu sangue ao leite. Ainda na primeira infância, amarrei o rabo do gato ao do cachorro, raspei a cabeça da minha irmãzinha, soltei o freio de mão do nosso fusca só para vê-lo arrancar o portão e bater no muro da frente. Joguei quilos de sal na horta para que nada mais brotasse. Já moço, inventei para meu pai que minha mãe tinha um caso com o padeiro e com o leiteiro. Botei fogo na casa. Arranquei a sangue frio os dentes de ouro da vovó, roubei a lata de bolachas onde a família escondia as economias e fugi de casa.
Fui para Brasília. Elegi-me deputado federal. A cerimônia de recebimento do diploma foi uma espécie de beatificação. Tornei-me então um ser de luz. Mudei meu nome para São Bel. Passei a usar túnica branca. Um sacoleiro me trouxe do Paraguai uma auréola de neon. Deixei crescer os cabelos e uma longa barba branca. Questão de imagem. Fiz plástica para ficar com olhos de filhote pidão. Fiz estágio com os monges beneditinos para aprender a entoar cantos gregorianos. Tornei-me o deputado da família, dos idosos e do aleitamento materno.
E foi então que minha irmã, que nunca havia me perdoado por raspar sua cabeça, apareceu com um vídeo em que eu aparecia arrancando os valiosos dentes da vovó. Divulgou na imprensa. O Brasil viu o deputado santo enfiar um alicate na boca da velhinha, chacoalhar sua cabeça e então sair com um molar dourado, com raiz e tudo. Como não podia deixar de ser, fui acusado de quebra de decoro parlamentar. Subi ao palanque para me defender:
- Senhores. Se cometi alguma iniquidade, isso aconteceu quando eu ainda não era deputado. Como poderia responder por erros cometidos quando ainda não havia sido ungido com a beatificação parlamentar? Pergunto o que seria desta casa se todos respondêssemos pelos nossos erros quando ainda éramos impuros?
Num silêncio constrangedor, votaram todos secretamente pela minha absolvição