segunda-feira, 1 de julho de 2013

EU TINHA UM CELULAR

            
Meu antigo RYALZTX

Eu tinha um celular e ele era descolado. Seu nome era formado por quatro letras, sendo que apenas uma era vogal. Eu nunca soube pronunciar seu nome e vivia com ele na mão, já que não cabia no bolso. Quando alguém via e ficava impressionado com sua modernidade, logo me perguntava o modelo. Eu dizia:
-RALSZTZ
Ou
-RIALTZC
OU
-REIZORLST
            Enfim. Eu nunca soube pronunciar o nome do meu celular. Mas ele tinha dois ou três filmes que, na locadora, poderiam ser encontrados na prateleira de “Superlançamentos”. Ele tinha a primeira temporada de “Madmen” completa gravada nele. Todos os riffs sombrios de Tommy Iommi, todos os “All right now” de Ozzy Osbourne estavam nele. Van Morrisson estava nele, junto com “20 best western tracks”. Geni e o Zeppelin e toda a Opera do malandro também. Ele tinha aplicativos. Outro dia tirei uma foto de uma abelha numa flor e, trinta segundos depois ela estava no Instagram. Se alguém na China quisesse ver minha abelha, era só acessar meu Instagram. Armado de paciência oriental e mãozinhas minúsculas, era possível digitar uma tese em meu celular, inclusive fazer todos os cálculos estatísticos. Ele tinha mapas. Eu podia ver o topo do pico do Everest em 3D em meu celular e, assim, decidir qual face atacar se, um dia, eu resolvesse escalá-lo. Mas aí aconteceu a tragédia.
            Eu fui ao supermercado e fui ao estacionamento empurrando o carrinho e levando o celular na mão esquerda. Ele não cabia no bolso. Abri o porta-malas e, suprema chucrice, coloquei meu RAILTEZER sob o porta-malas, junto à trava de fechamento. Guardei as sacolinhas e POW. Bati o porta-malas e nada dele fechar. POW POW POW. Agora sim. Fechou. Nem me dei conta do que havia feito. Mais tarde, procurei meu RINTZERLI e nada. Usei o velho truque de ligar para mim mesmo a partir do telefone fixo. Meu ringtone era “Ceremony” do New Order. E então, quando eu liguei, escutei “Ceremony” vindo das catacumbas do meu porta-malas. Achei meu RIMERÇULZ COM racho de ponta a ponta na tela.
            Xinguei a Honda, por projetar um porta-malas que poderia esmagar um celular. Xinguei a rede Pão de Açúcar porque...porque eu estava puto da vida. Mas então a adrenalina baixou e xinguei quem merecia realmente: eu. E então quis me punir. Na mesma noite fui ao Extra. Passei pela promoção de azeites, a de óleos lubrificantes e, depois da pilha de impressoras, cheguei ao balcão de celulares. Solícito, o vendedor perguntou:
- Posso ajudar?
-Qual seu celular mais barato? Perguntei.
-Este. Mas ele não tem câmera, nem internet, nem nada.
-Ele fala? Perguntei.
-Fala.
-Quanto custa? Perguntei.
-Oitenta reais.
            Comprei. Meu celular novo tem agenda, contagem regressiva e rádio FM. Ele tem quatro toques polifônicos possíveis. Escolhi a “Ave Maria”, de Gounod. Quando alguém me liga, meu celular me faz lembrar um caminhão de gás. E quando escuto aquele sonzinho de caminhão de gás vindo do meu celularzinho ordinário, logo penso:
-Bem feito, sua mula.

domingo, 13 de maio de 2012

O ÓBVIO ULULANTE CONTRA-ATACA OU SOBRE COMO TEMOS VERGONHA DE COMPRAR DINHEIRO


O óbvio ululante


O grande Nelson Rodrigues (sempre este autor fatal) tinha por Otto Lara Resende uma destas amizades fundamentais, devotas. Esta devoção chegava mesmo a incomodar o Otto na medida em que o anjo pornográfico fazia do amigo um de seus principais personagens em suas crônicas diárias. E foi numa destas crônicas com seu personagem predileto que Nelson criou o hoje clássico termo “óbvio ululante”.
            Reconto com palavras minhas. Otto vinha dirigindo por sei lá qual rua do Rio de Janeiro quando freou bruscamente o carro, desceu, olhou para o Pão de Açúcar e exclamou “Como é lindo! Como é lindo!”. As pessoas a sua volta não entenderam nada, afinal de contas o Otto tinha visto zilhões de vezes a tal pedra. Mas segundo Nélson, o fato é que o Otto tinha conseguido realmente ver o que nem todos conseguiam: a óbvia beleza da pedra saltando ululante aos olhos.
            Mas eu contei tudo isso porque recentemente tive meu próprio encontro com o óbvio ululante. Explico. Comia eu meu rotineiro bife com fritas enquanto contava a um amigo algumas histórias da televisão que havia lido no “Livro do Boni”. O cara ficou interessado e me pediu o livro emprestado. Disse “Claro, amanhã eu te trago”, terminamos de comer e nos despedimos. E fui então que tudo aconteceu.
            Antes de voltar ao laboratório, passei no caixa eletrônico para sacar cinquenta paus. Inseri o cartão e imediatamente a máquina sedutora me apresentou a foto de uma família feliz e ofereceu dinheiro para “realizar meus sonhos”. Recusei então aquilo que costumamos chamar de “empréstimo bancário” e refleti: o banco não nos empresta nada. O banco nos vende o dinheiro.
            Mas então porque dizemos que “emprestamos dinheiro a juro” e não que “compramos dinheiro a prazo”? Simples. Porque queremos satisfazer nossos sonhos de consumo mas temos vergonha de dizer que não podemos. O banco, sabedor desta nossa fraqueza psicológica, age como aquele agiota que passa o dia bebericando café no Bar Central. Com pose de velho amigo, ele chacoalha as correntes de ouro do pescoço e nos adianta uns tostões. E nós cumprimos o script e aceitamos a “grana” do nosso velho camarada. Rapidamente fugi da tela sedutora, peguei meus cinquenta paus e voltei ao laboratório. Enquanto caminhava, refleti sobre o óbvio ululante. Emprestar significa deixar o livro com um amigo para poder trocar ideias no próximo filé com fritas. Mesmo sem os cordões de ouro, a telinha daquela caixa cinza impessoal quer é nos vender tostões. E caro.

sábado, 21 de abril de 2012

ANENCÉFALOS

Favor usar sem moderação

Acabo de voltar do banheiro e, pelo que pude constatar, não pertenço ao gênero que dá a luz. Assim, antes que alguém deseje desqualificar minha opinião sobre a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos, gostaria de lembrar que nove dos onze ministros do supremo também são homens. Portanto, mesmo que me falte a toga, lá vai meu pitaco.
            “Pedaço de mim” é talvez a letra de música mais triste composta em Língua Portuguesa. É tão triste que, se não fosse tão bonita, não valeria a pena ser ouvida. Nela, o soberbo Chico decreta:
“Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu”
            Mais triste que a música, só mesmo a realidade. Imagine inflar o ventre e produzir o leite do filho que vai morrer. Imagine ver os contornos e escutar o “wuá-wuá” cardíaco no ultrassom e saber que aquela criatura não há de vingar. Que fazer? O mínimo. Que a mãe escolha a hora e lugar do revés do parto. Que a mãe arrume o quarto do filho que já morreu na hora em que bem entender.

domingo, 8 de abril de 2012

SEU ROQUE TAMANINI E AS RAÍZES DO BRASIL

Seu Roque me fez lembrar deste livro fundamental...

Cobertos de fuligem e suor, nossos irmãos do norte forjaram a modernidade à base de carvão, aço e vapor. Enquanto isso, abaixo do equador, insistíamos em adoçar o mundo  a base de cana e músculos africanos. No norte, homens como Benjamin Franklin, James Watt e Lavoisier tomavam choques, faziam fumaça e fediam a enxofre para fundar as facilidades do mundo moderno. Por aqui, papai descia o relho em "seus pretos" enquanto o filhinho vestia gravata de cetim e ia para as universidades da metrópole bebericar vinho do porto e tecer a labiríntica burocracia do estado-mamute que nos atola até hoje.
            O célebre historiador Sérgio Buarque de Holanda, pai do não menos célebre Chico, já denunciava este bunda-molismo, esse “nojinho” de fazer coisas com a mão. Para ele, o brasileiro sempre achou inferior o trabalho mecânico. Bonito mesmo é papel. No seminal “Raízes do Brasil”, o grande Holanda chamou esta lamentável faceta da cultura brazuca de “bacharelismo”.
            Mas você há de perguntar: porque tamanha fúria sociológica? E mais. O que isso tem a ver com o Professor Roque? Explico, explico. Fiquei chateado quando soube, com certo atraso, que Seu Roque Tamanini morreu. Seu Roque foi meu professor de desenho técnico, marcenaria e trabalhos manuais. Seu Roque me ensinou a desenhar um parafuso em projeção ortogonal. Seu Roque me ensinou a instalar dois interruptores e uma lâmpada em paralelo. Ensinou a fazer um cabo de rodinho a partir de um toco de pinus. Enfim, ensinou tudo isso e muito mais. Hoje pouco lembro dos diagramas elétricos e nem sei se um parafuso se aperta girando para a esquerda ou para a direita. Não interessa, não interessa. O fato é que eu e muitos outros ex-moleques somos menos bunda-moles por causa do Seu Roque.

domingo, 1 de abril de 2012

HARRISON FORD, MELANIE GRIFFITH E A MAIOR FELICIDADE DO MUNDO


Um filme divertido num dia muito, muito feliz

A enfermeira soltou um único pedaço de fita crepe que mantinha o pequeno pacote coeso e abriu o lençol. Neste momento, o sangue faltou às minhas pernas e apoiei a testa no vidro. Foi então que, através das lágrimas e do hálito condensado, eu vi você pela primeira vez. Como alguém que faz uma longa viagem e fica muito tempo na mesma posição, vi você alongar braços e pernas enquanto o peito subia e descia para encher os pulmões com aquela novidade chamada ar. Seu urro da vida fazia o curativo do umbigo balançar. Como Jacques Cousteau, fiz um OK interrogativo para a enfermeira, que me respondeu sorridente com um OK tranqüilizante enquanto fechava a cortina. Fim do primeiro ato.
            E então, antes do amor, veio o pânico. Tem cérebro? Será que respira? Será que escuta? Será que enxerga? O coração bate direito? O intestino funciona? Tem dez dedos nas mãos? E nos pés? Porque um curativo tão grande no umbigo? Em casa, o pânico persiste. Mamou direito? Arrotou? Mijou? Cagou? Está limpa? Tem calor? Tem frio? Quer dormir? Quer acordar? Porque chora? Tem cólica? Visitas, por favor, Olhem de longe e nem pensem em pegar no colo. É bom nem entrar no quarto. Confesso, confesso. Foram cinco meses de pânico. Cinco meses sem amor. E foi então que tudo mudou.
            Era um daqueles feriadinhos providenciais de quarta-feira, sem emenda com o fim de semana. Deitei-me no tapete da sala e tirei a almofada do sofá para apoiar a cabeça. Na sessão da tarde, passava o divertido “Uma secretária de futuro”, com a ex-bela Melanie Griffith e o eterno Indiana Jones. Acomodei você sobre meu peito, de bruços. E então, enquanto Sigourney Weaver quebrava o pé, caímos no sono. Uns trinta, quarenta minutos depois, despertei assustado com o plim-plim que anunciava o fim do intervalo comercial. Suas mãos pressionaram levemente meu peito enquanto você levantou vacilante o cabeção para me fitar com seus imensos e narcotizados olhos azuis. Babando profusamente na minha velha camiseta “Farma USP Ribeirão”, você abriu um adorável sorriso banguela e, exausta do esforço, desabou novamente num sono profundo.
            Com cuidado, levantei-me do chão sem que você acordasse. Fui ao quarto e pus você no berço. Sorri ao ver a marca da dobra da minha camiseta impressa na sua bochecha branquinha e voltei para a sala. Harrison Ford cravava um beijo apaixonado em Melanie enquanto eu pensava: pode alguém ser mais feliz que eu? E foi assim, minha filha, que eu nasci para você.