domingo, 31 de julho de 2011

HAMSTERS SOBRE DUAS RODAS


            Posso estar enganado, mas Laerte e Paragua tinham uma BMX pantera cada. Delba, uma Monark arco-iris. Álvaro, uma belíssima e bem cuidada caloi extra nylon azul. Taits e Kiko tinham calois extra light cor de vinho, com freios e rodas de alumínio . Cláudio tinha uma exótica calói tigrão, preta com a estampa do banco imitando a pele do animal. Meu primo sapo tinha uma extra nylon cromada com os raios pretos que ele quebrou no mesmo dia em que ganhou, ao saltar a escadaria da igreja de Mineiros do Tietê. Doido. Eu tinha uma Brandani cross marrom metálica com dois amortecedores traseiros e freios nos pés. O banco era comprido e afilado como um concorde, no melhor estilo Chopper. Igual à minha, só a do Pedro. Mas a dele era azul. Para saber se o moleque estava em casa, bastava olhar pela fresta do portão. Se sua bicicleta estivesse na garagem, ele estava. Se não, não adiantava nem chamar. Chamar sim, porque nunca usávamos a campainha. Sem descer da bicicleta, Gritávamos seu nome, sempre oxítonos:- Fulan-Ô! Aonde vamos? Do Caiçara à Coopersucar, Da Fazenda Morro Vermelho à Estação Ferroviária. Peter Fonda e Dennis Hopper, sem destino. A bicicleta, uma extensão do moleque. Ou vice-versa.
            Claro que não é a mesma Brandani cross, mas passados mais de vinte e cinco anos, tenho minha magrela tunada. Numa manhã de domingo destas, fui dar uma volta na ciclovia. Por decreto, em dia e hora estipulados, uma das faixas da avenida é toda reservada aos ciclistas. Entrei no fluxo. Um guarda municipal sorridente e solícito parou os autos nas demais faixas da avenida para que eu pudesse cruzar em direção ao Parque. Cinco quilômetros depois, saí de lá incomodado e fui pedalar nas ruas do Centro. Sim, a ciclovia é uma beleza. A família pedala em segurança, estimula a prática da atividade física. É uma ótima opção de lazer. Pode ser, mas para mim a bicicleta nunca foi brinquedo nem aparelho de ginástica. Solenemente me recuso a sair para pedalar e passar duas vezes no mesmo lugar.

domingo, 24 de julho de 2011

A INFANTARIA ROMANA E A COPA AMÉRICA

O grande exército romano foi praticamente invencível durante toda antiguidade clássica graças à sua disciplina e treino. Era capaz de assumir diversas configurações, de acordo com as exigências da batalha. Muitas destas configurações eram defensivas. Na formação conhecida como “tartaruga”, por exemplo, os legionários formavam um retângulo ou quadrado com os homens de frente mantendo o escudo na vertical enquanto que os demais posicionavam seus escudos na horizontal formando uma espécie de teto. A “tartaruga” era particularmente eficiente para evitar ataques de projéteis como flechas e lanças. Convenhamos que os soldados haviam de ter colhões para receber aquela saraivada e não debandar.
            E era esse tipo de virtude que eu achava ver nas seleções futebolísticas de menor tradição. Na fase de grupos da enfadonha Copa América, times como Bolívia, Venezuela, Peru e etc entraram em campo com a proposta de segurar a onda durante noventa minutos, depois mais trinta para só então tentar a sorte nos pênaltis. Nos primeiros jogos eu estava empolgado com o clima criado em torno da competição: o Brasil tentando seu tri, a rivalidade com a Argentina e o sempre brigador futebol uruguaio. Então vieram os jogos da primeira rodada e foi aquele festival de empates. Foi quando eu decididamente passei a desprezar este tipo de estratégia. Ao contrario dos romanos, a estratégia “tartaruga” no futebol é irritante. Explico.
            O Paraguai corre o risco de ser campeão sem ganhar uma única partida na competição. Muitos podem louvar a disciplina tática, a marcação cerrada, enfim, achar que nossos vizinhos guaranis são legionários romanos em formação “tartaruga”. Não são. Os antigos romanos, quando assumiam essa configuração, aproveitavam o intervalo enquanto os arqueiros ou lanceiros inimigos aprontavam o novo disparo para avançar preciosos passos em sua direção. Pacientemente, seis ou sete saraivadas depois, lá estavam eles dizimando os bárbaros com suas espadas curtas no glorioso combate corpo a corpo. Na estratégia tartaruga do futebol Copa América, agüentar cento e vinte minutos pode, no máximo, levar à aleatória e ridícula vitória nos pênaltis.

domingo, 17 de julho de 2011

COISAS MUITO ESTRANHAS ACONTECEM EM PETÚNIAS

            Petúnias, ao norte do estado, é uma beleza só. Trata-se de uma cidadezinha de uns dez mil habitantes cujo núcleo central de construções - que inclui prefeitura, câmara municipal e igrejinha, segue o trajeto sinuoso de um rio pequeno mais muito limpo e turbulento, também chamado “Rio Petúnias”. Com o crescimento econômico que o turismo trouxe à cidade, os muito ricos ou os muito pobres (os primeiros pela bela paisagem e os segundos pela necessidade mesmo) trataram de construir suas residências nas encostas dos morros ao longo do vale do rio. Os hotéis também ficam nestas encostas e costumam receber hordas de turistas, especialmente senhoras da terceira idade que ali chegam atraídas pelo clima ameno, águas medicinais e um artesanato muito delicado, feito com cascas de ovos e tradicional da região. Sem dúvida, Petúnias é um pequeno paraíso bucólico - e isso todo mundo sabe.
            Infelizmente, o que ninguém sabe, é que uma coisa muito estranha acontece no restaurante do “Grande Hotel Alpino”, um dos mais antigos e procurados daquela cidade. Explico. No estupendo jogo de talheres de prata do GHA há uma colher de sopa que é única nas reações sinistras que é capaz de provocar na pessoa que a manipula, mas indistinguível das demais pela aparência. Ninguém sabe disto, mas o que descrevo sempre acontece com a primeira mulher com mais sessenta anos que, no mês de maio de um ano bissexto, toma sopa de ervilhas no jantar com a referida colher. Quando isso ocorre, por mais pacata que seja, a senhorinha acaba tomada por um ímpeto irrefreável de assassinar alguém. Esta estranha sina, lei da natureza, maldição ou sei lá o que, manifestou-se pela última vez em Dona Dolores, em maio de 2008, na forma que relato a seguir.
            A viúva Dolores, aposentada de 63 anos, chegou a Petúnias naquele ano com seu grupo de danças de salão do SESC para passar o fim de semana. Fez check in às 16:00, foi para o quarto, desfez as malas, tirou as sandálias, calçou pantufas e ficou tricotando até a hora do jantar. Desceu exatamente às 17:50 e ficou esperando o restaurante abrir. Suas amigas de SESC chegaram depois e furaram a fila, entrando junto com dona Dolores. Sem saber da nada (como saberia?), a velha senhora pegou a malfadada colher e com ela tomou justamente a sopa que não poderia: a de ervilhas. Após a sopa, comeu iscas de peixe com arroz à grega e molho tártaro. Finalizou a refeição com um delicioso doce de leite cremoso com queijo fresco. Gostou tanto que colocou um pouco do doce num copo plástico para comer mais tarde, lembrando-se de levar uma colherzinha plástica junto. À noite, o grupo todo passeou pelas ruas principais de Petúnias para comprar as famosas lembrancinhas de cascas de ovos e, às 21:40 retornaram ao Grande Hotel Alpino. Dona Dolores tirou a roupa de sair, vestiu um pegnoir novo muito florido que definitivamente não combinava com as pantufas. Tirou as dentaduras e, enquanto fazia a higiene bucal, veio a irrefreável vontade de assassinar.
            Voltou ao quarto, sentou-se na poltrona e não pegou o tricô. Tomou em suas mãos o delicado bibelô feito de cascas de ovo que adquirira naquela noite e fitou-o durante longos minutos. Devolveu o objeto ao seu lugar de origem levantando-se rapidamente, como quem toma uma resolução. Foi até o banheiro, desatarraxou uma das lâmpadas da luminária do espelho, cobriu-a com a toalha de rosto, colocou no chão e pisou muitas vezes até não mais ouvir barulho de vidro quebrado. Com a colher plástica, recolheu o vidro moído e colocou tudo no copinho como o delicioso doce de leite. Misturou tudo muito bem, até ficar bem homogêneo. Era tarde, mais não importava. Bateu à porta do quarto de Dona Eda, vizinho ao seu. Disse à amiga que ela não poderia dormir sem provar aquela delícia. A roliça dona Eda não dispensava uma boquinha e não foi preciso falar duas vezes para que a ela comesse tudinho. Dona Dolores despediu-se levando consigo a colherzinha plástica e o copinho vazio. Durante o café no dia seguinte, todo o grupo estranhou ausência de Dona Eda. Avisaram o gerente que abriu o quarto com a chave reserva. A cena foi chocante. A velha senhora jazia imóvel na cama, de costas para o colchão. Um grande círculo vermelho tingia os lençóis outrora muito brancos e limpos. Acabou-se o passeio e o grupo foi embora de Petúnias.
            Todos, inclusive a polícia, acharam que foi morte natural. Só Dona Dolores e nós, que conhecemos o misterioso fenômeno da colher de prata do GHA, é que sabemos o que realmente aconteceu. Mas o que intriga nesta história é a maneira rápida, ardilosa e, arrisco dizer, profissional como a velha senhorinha executou sua sina. Conhecendo Dona Dolores como só eu conheço, diria que ela cogitou utilizar o bibelô para executar seu plano fatal, mas vacilou ante a graciosidade do objeto. Finalmente, a nós resta esperar:
1-Que o Grande Hotel Alpino resolva trocar seu faqueiro.
2-Que o Grande Hotel Alpino resolva não fazer sopa de ervilhas em maio de 2012.
3-Caso 1 e 2 não ocorram, que nunca uma senhora tão competente na arte de matar cruze o caminho da colher maldita.

domingo, 10 de julho de 2011

A SEGUNDA-FEIRA DE SEU DOMINGOS

Acordou sem a ajuda do despertador. Era a primeira vez em incontáveis anos que uma segunda-feira começava sem o alarme estridente do rádio relógio. Ainda deitado, sorriu para o teto com a idéia de que ele e o escandaloso aparelho aposentavam-se no mesmo dia. Virou-se de lado e assumiu uma posição fetal abraçando-se ao antigo travesseiro da esposa. Deste ângulo o lugar vago da companheira parecia uma vasta planície. Depois da linha do horizonte, vislumbrou o porta-retratos com as fotos dos filhos distantes. Percebeu que, se ficasse mais dois segundos nesta posição, começaria a sentir pena de si mesmo. Voltou a ficar de costas no colchão e, num único impulso, girou os pés para fora da cama e ficou sentado. Calçou os chinelos de borracha novos em folha: um auto-presente para comemorar a nova fase da vida. Não eram as Havaianas a que estava acostumado, mas eram bem parecidas e mais baratas. Agora precisava adequar o orçamento à minguada aposentadoria.
            Como havia dormido de bermudas, levantou-se e vestiu apenas a camisa. Abotoou-a só até a altura do umbigo e colocou no bolso o cartão de beneficiário do INSS juntamente com as contas de água e de luz. Nos bolsos da bermuda pôs o pente Flamengo e um lenço. Passou um cafezinho sem-vergonha para ajudar a engolir três bolachas cream cracker. Cozinhou al dente meio pacote de macarrão chumbinho, misturou com meio pacote de fubá mimoso e guardou tudo num velho pote de margarina vazio – era a melhor isca para lambaris que conhecia. Colocou alpiste e trocou a água dos pássaros. Foi ao quartinho e pegou a varinha de bambu e uma pequena bolsa com as tralhas de pescaria. Antes de sair, pôs seu velho boné da Caixa Econômica Federal. Apesar da chuva do dia anterior, o dia amanhecera aberto e sol já estava implacável às nove horas da manhã.
            Passou na lotérica, recebeu o benefício, fez uma fezinha na Loto fácil e pagou água e luz. Cruzou com amigos da prefeitura que gracejaram com ele “Cadê o uniforme, Seu Domingos?”. “Pode fazer o maior frio do mundo que eu nunca mais uso botas nem calças”, respondeu. Não levava lanche porque pretendia almoçar em casa. A barranca do rio ficava a apenas cinco quilômetros de distância, por isso foi a pé. Ao chegar, foi descendo devagar a encosta úmida e escorregadia, mas as tiras do chinelo não resistiram e soltaram-se da sola. Escorregou, caiu na água e afundou. Foi encontrado flutuando dois dias depois e quatrocentos metros rio abaixo. Foi reconhecido pelo cartão de beneficiário do INSS que ainda estava no bolso da camisa. As contas de água e luz provavelmente desmancharam-se na água. Sobre o pente e o lenço nada se sabe, pois o rádio nada divulgou sobre o conteúdo dos bolsos da bermuda.
            A triste história de Seu Domingos não mereceria a pena ser contada não fossem as três incríveis ironias relacionadas a ela, a saber:
- Primeira ironia: um homem morreu em seu primeiro dia como aposentado.
- Segunda ironia: “Seu Domingos” morreu numa “segunda”.
- Terceira ironia: se Seu Domingos tivesse comprado Havaianas, que todos sabemos não soltar as tiras, ele não teria morrido.
            Mais o mais incrível mesmo não são as ironias tristes. Incrível é uma pessoa ter a cara de pau de achar que é Albert Camus e publicar uma história dessas...

domingo, 3 de julho de 2011

UM ALIMENTO HIPÓCRITA

      Aquele que tenta explicar o irracional corre o risco de parecer mais doido que o Fanfula. Pior ainda quando o assunto explicado é irrelevante e não passa de uma implicância gastronômica pessoal. Mas não importa. Como disse uma vez o fictício príncipe da Dinamarca, “É loucura, mas há método nisso”. Eis o método: um parágrafo sobre o churrasco, outro sobre os legumes e o parágrafo final sobre a pipoca.
   Primeiramente, considere o churrasco. O churrasco é simplesmente impressionante. Sente-se o aroma antes de comer e após esfalfar-se com os nacos bovinos, você percebe que traçou algo divino. Grandes expectativas olfativas são devidamente preenchidas no primeiro pedaço comido. Honestidade. Como bônus, agrega-se a família, tem-se a companhia dos amigos, cerveja direto da latinha e, vá lá, o dispensável pagodinho. Repare que, entre os mais abastados, o pagodinho dá lugar ao DVD dos BeeGees numa TV de LCD de 42 polegadas. Igualmente dispensável.

      O parágrafo antes da pipoca diz respeito aos legumes. O legume, cru ou cozido é absolutamente sem graça. Os legumes simplesmente não têm cheiro ou, se o tem, é invariavelmente ruim, sulfuroso. Quem come, come por motivos nutricionais apenas. Você come um legume porque sabe que faz bem e pronto. Você come um legume por senso de dever. Quem, como eu mesmo, fala que gosta de legumes simplesmente se acostumou com eles. Mas não há como negar, há uma relação honesta entre você e o legume. Ele não cheira, ele não promete nada pra você.
     Agora a pipoca. Não há como negar, o cheiro é inebriante. Entrar no cinema, sentir o aroma ou escutar aquele poc poc poc da pipoca estourando já faz nossas glândulas salivares trabalharem a mil por hora. Ludibriado pelo olfativo canto da sereia, acaba comprando um pacotaço desta porcaria, que nos cinemas custa uma fortuna, verdadeiro assalto. Confortavelmente instalado na sua poltrona com uma coca gigante e o enorme saco do desprezível alimento no colo, você experimenta o negocinho gordurento de tanta manteiga e se dá conta da besteira que fez. Pipoca é pura falsidade. Pelo cheiro, acha que é a maior delícia, mas ao comer percebe que não tem gosto de nada. É só sal, manteiga e aquela textura de isopor. Corre-se ainda o risco de acabar com suas obturações num acidente com um peruá. Churrasco promete e cumpre. Legume não promete nada, mas faz bem. Pipoca é hipocrisia pura e ainda engorda.