Petúnias, ao norte do estado, é uma beleza só. Trata-se de uma cidadezinha de uns dez mil habitantes cujo núcleo central de construções - que inclui prefeitura, câmara municipal e igrejinha, segue o trajeto sinuoso de um rio pequeno mais muito limpo e turbulento, também chamado “Rio Petúnias”. Com o crescimento econômico que o turismo trouxe à cidade, os muito ricos ou os muito pobres (os primeiros pela bela paisagem e os segundos pela necessidade mesmo) trataram de construir suas residências nas encostas dos morros ao longo do vale do rio. Os hotéis também ficam nestas encostas e costumam receber hordas de turistas, especialmente senhoras da terceira idade que ali chegam atraídas pelo clima ameno, águas medicinais e um artesanato muito delicado, feito com cascas de ovos e tradicional da região. Sem dúvida, Petúnias é um pequeno paraíso bucólico - e isso todo mundo sabe.
Infelizmente, o que ninguém sabe, é que uma coisa muito estranha acontece no restaurante do “Grande Hotel Alpino”, um dos mais antigos e procurados daquela cidade. Explico. No estupendo jogo de talheres de prata do GHA há uma colher de sopa que é única nas reações sinistras que é capaz de provocar na pessoa que a manipula, mas indistinguível das demais pela aparência. Ninguém sabe disto, mas o que descrevo sempre acontece com a primeira mulher com mais sessenta anos que, no mês de maio de um ano bissexto, toma sopa de ervilhas no jantar com a referida colher. Quando isso ocorre, por mais pacata que seja, a senhorinha acaba tomada por um ímpeto irrefreável de assassinar alguém. Esta estranha sina, lei da natureza, maldição ou sei lá o que, manifestou-se pela última vez em Dona Dolores, em maio de 2008, na forma que relato a seguir.
A viúva Dolores, aposentada de 63 anos, chegou a Petúnias naquele ano com seu grupo de danças de salão do SESC para passar o fim de semana. Fez check in às 16:00, foi para o quarto, desfez as malas, tirou as sandálias, calçou pantufas e ficou tricotando até a hora do jantar. Desceu exatamente às 17:50 e ficou esperando o restaurante abrir. Suas amigas de SESC chegaram depois e furaram a fila, entrando junto com dona Dolores. Sem saber da nada (como saberia?), a velha senhora pegou a malfadada colher e com ela tomou justamente a sopa que não poderia: a de ervilhas. Após a sopa, comeu iscas de peixe com arroz à grega e molho tártaro. Finalizou a refeição com um delicioso doce de leite cremoso com queijo fresco. Gostou tanto que colocou um pouco do doce num copo plástico para comer mais tarde, lembrando-se de levar uma colherzinha plástica junto. À noite, o grupo todo passeou pelas ruas principais de Petúnias para comprar as famosas lembrancinhas de cascas de ovos e, às 21:40 retornaram ao Grande Hotel Alpino. Dona Dolores tirou a roupa de sair, vestiu um pegnoir novo muito florido que definitivamente não combinava com as pantufas. Tirou as dentaduras e, enquanto fazia a higiene bucal, veio a irrefreável vontade de assassinar.
Voltou ao quarto, sentou-se na poltrona e não pegou o tricô. Tomou em suas mãos o delicado bibelô feito de cascas de ovo que adquirira naquela noite e fitou-o durante longos minutos. Devolveu o objeto ao seu lugar de origem levantando-se rapidamente, como quem toma uma resolução. Foi até o banheiro, desatarraxou uma das lâmpadas da luminária do espelho, cobriu-a com a toalha de rosto, colocou no chão e pisou muitas vezes até não mais ouvir barulho de vidro quebrado. Com a colher plástica, recolheu o vidro moído e colocou tudo no copinho como o delicioso doce de leite. Misturou tudo muito bem, até ficar bem homogêneo. Era tarde, mais não importava. Bateu à porta do quarto de Dona Eda, vizinho ao seu. Disse à amiga que ela não poderia dormir sem provar aquela delícia. A roliça dona Eda não dispensava uma boquinha e não foi preciso falar duas vezes para que a ela comesse tudinho. Dona Dolores despediu-se levando consigo a colherzinha plástica e o copinho vazio. Durante o café no dia seguinte, todo o grupo estranhou ausência de Dona Eda. Avisaram o gerente que abriu o quarto com a chave reserva. A cena foi chocante. A velha senhora jazia imóvel na cama, de costas para o colchão. Um grande círculo vermelho tingia os lençóis outrora muito brancos e limpos. Acabou-se o passeio e o grupo foi embora de Petúnias.
Todos, inclusive a polícia, acharam que foi morte natural. Só Dona Dolores e nós, que conhecemos o misterioso fenômeno da colher de prata do GHA, é que sabemos o que realmente aconteceu. Mas o que intriga nesta história é a maneira rápida, ardilosa e, arrisco dizer, profissional como a velha senhorinha executou sua sina. Conhecendo Dona Dolores como só eu conheço, diria que ela cogitou utilizar o bibelô para executar seu plano fatal, mas vacilou ante a graciosidade do objeto. Finalmente, a nós resta esperar:
1-Que o Grande Hotel Alpino resolva trocar seu faqueiro.
2-Que o Grande Hotel Alpino resolva não fazer sopa de ervilhas em maio de 2012.
3-Caso 1 e 2 não ocorram, que nunca uma senhora tão competente na arte de matar cruze o caminho da colher maldita.
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