domingo, 25 de março de 2012

NOTEBOOKS E A VELHA OLIVETTI LETTERA 82 PORTÁTIL

Hemingway na foto que tanto me impressionou


Todos carregamos na alma um panteão de heróis, mortos ou vivos, que vamos acumulando ao longo da existência. Políticos, atores de cinema, esportistas, ídolos do rock, escritores...enfim. Se alguma pessoa deixou alguma marca no nosso modo de ser ou de pensar, costumamos reverenciá-la. Mas o fato é que agora eu não vou reverenciar ninguém. Vou reverenciar uma coisa, um objeto. Afinal de contas, coisas também podem causar impressões profundas.
            Meu primeiro contato com a máquina de escrever foi auditivo. Em plena fase de alfabetização, eu demorava uns minutos para escrever “Eu vejo a barriga do bebê”, os mesmos minutos que minha tia levava para metralhar uma lauda na velha Olivetti Lettera 82 portátil. Na escrivaninha onde fazia a lição, eu mordia a língua para desenhar as primeiras letras cursivas enquanto escutava o rá-tatatá que a máquina fazia aos comandos dos indicadores roídos da irmã caçula da minha mãe. E, para minha suprema humilhação, tudo que meu caderno exibia eram toscas garatujas borradas de grafite, enquanto a máquina cuspia páginas e páginas em límpidas letras de forma.
            Anos depois eu vi, não sei se foi numa enciclopédia Barsa ou num exemplar de Seleções, uma foto de um de meus heróis literários com o admirável dispositivo mecânico. Na foto em preto e branco, Ernest Hemingway estava sentado à mesa num lugar descampado e sob um céu carregado de nuvens. Ele não via as nuvens nem as montanhas ao longe. Na verdade, ele apertava os olhos para ver o papel enrolado no cilindro da máquina e, diferentemente da minha tia, apoiava as mãos na mesa para dedilhar eficientemente usando todos os dez dedos. E assim, gosto de acreditar, ele datilografou as mais belas combinações de palavra que alguém jamais escrevera antes.

            Fascinado com a imagem despojada e viril do autor de “O velho e o mar”, me matriculei na “Escola de datilografia Visconde de Cairu” e, se hoje digitei este textículo (neologismo para textinho ridículo) usando todos os dez dedos sobre meu Dell Inspiron i14440-651 de quatorze polegadas, foi graças ao velho Ernest. Minha tia, coitada, se foi antes de poder castigar o macio teclado de meu notebook com seus violentos indicadores.

domingo, 18 de março de 2012

UM DESTINO GARRÍNCHICO PARA O IMPERADOR ADRIANO?

Pacaembu, onde meu pai presenciou o fim

Havia entre eu e meu venerando pai o abismo de uma geração. Apesar do amor incondicional, divergíamos em quase tudo: política, segurança pública, artes e etc. Mas, como diria o presidente FHC, em algumas “issues”, concordávamos alegremente. Compartilhávamos o gosto pelo delicioso fermentado amarelo e espumante. Compartilhávamos também a paixão clubística pelo “Sport Club Corinthians Paulista”. E não raramente botávamos nossas afinidades em prática.
            A título de evitar a censura dos familiares, criamos um ritual para podermos beber a apreciada cerveja digamos, de maneira levemente exagerada. Eram nossos churrascos a dois. Nestas ocasiões, acendíamos a pequena churrasqueira feita de roda de caminhão, espetávamos um grilo num alfinete e fatiávamos uma bisnaguinha seven boys para acompanhar. Tiritando de frio, trinta latas de Skol obedientemente esperavam no freezer. Espocando uma após a outra, o grilo esturricava no fogo enquanto a cabeça ia ficando confusa e a língua, fácil. Cada vez menos Veneziani e cada vez mais Karamazov, falávamos cada vez mais alto e com gestos cada vez mais teatrais. E foi num destes momentos dostoievskianos que ele me contou seu episódio com Garrincha.
            No tempo em que ainda se trabalhava de terno e gravata, meu pai afrouxou a sua para assistir a estréia de Mané no Corinthians, contra o Vasco. Os anos de etanol e cortisona já haviam feito seu estrago e o craque já não era nem sombra do bi-campeão mundial que havia brilhado no Chile. Meu pai contou que deixou o belíssimo estádio do Pacaembu aborrecido pelo resultado: três a zero para o time de São Januário. Mas confessou que, no estacionamento do estádio, sentou-se ao volante da perua rural Willys, acendeu um Hollywood e chorou. Chorou não pelo resultado, mas por Garrincha. Chorou pela forma como seus então dribles desconcertantes eram agora desarmados pelos bocejantes zagueiros vascaínos. Chorou pelo fim.
            Quarenta e tantos anos depois, não temos nem mais Garrincha nem meu pai. E o Corinthians agora já não tem também o imperador Adriano. A bem da verdade, Adriano não tem o currículo e acho que nem tem a mesma paixão destruidora pelo etanol que o ingênuo Mané. Mas, não podemos negar, sua passagem foi igualmente decepcionante. Hoje, os venenos são outros, são outros. Espero que, de volta ao Rio de Janeiro, o roliço atacante encontre razões mais profundas para viver, razões que transcendam a fortuna, as mulheres fáceis e as churrascarias. De Adriano no glorioso Timão, só posso dizer que não deu nem para chorar ao volante...

domingo, 11 de março de 2012

SOBRE OOMPA LOOMPAS E SOBRE COMO FUI TROCAR MEU CELULAR NUM DIA PSICODÉLICO

Oompa Loompas, minha nova equipe de limpeza doméstica

Foi uma sexta-feira muito, muito estranha. Começou com uma escolha infeliz, uma verdadeira idéia de jerico. Explico. Levantei-me com o pé esquerdo, meio entediado lá pelas sete da manhã e segui para o banheiro, lugar onde fiz a tal escolha asinina. Olho-me no espelho, dou uns tapinhas no rosto para acabar de acordar, enxáguo a boca, toco pasta na escova e começo a necessária faxina dental. Foi quando escutei o estranho som:
- Râbou!
            Giro o pescoço em busca da origem do barulho esquisito.
-Râbou! Râbou!
            Achei. Sobre o mármore da pia, entre o tubo de creme de barbear e o tênis pé Baruel, eu vi. Um sapo enorme, inflado, todo verruguento e colorido. Roxo e verde-limão, para ser mais preciso. Entre intrigado e divertido, cuspo a espuma branca e faço a grande besteira. Pego o bicho pelo dorso e tasco-lhe uma grande lambida na barriga. Ele riu. Tem cócegas. Arrependido, tento lavar a boca. Já é tarde. A doideira começou.
            Na minha cabeça, Jim Morrison começa a cantar “Strange days”. O corredor que leva à sala de jantar parece um grande túnel colorido e giratório, com flores de todas as espécies e cores flutuando. Na cozinha, liderados pela minha faxineira, Oompa Loompas fazem uma limpeza furiosa. Sorridente como sempre, ela me estende uma caneca de café e diz:
- Bom dia, seu Rodrigo! Gostou da minha equipe de limpeza?
            Confuso, tomei a caneca em minhas mãos e respondi:
- A-rã.
            Ela disparou a falar:
- Foi bom encontrar o senhor. É o seguinte. Os tempos mudaram, o senhor bem sabe. Foi-se a época em que, para comprar alguma coisa era só perguntar “Quanto custa?”. Hoje, as relações de consumo são mais complexas, os produtos são mais diversificados. Eu, enquanto profissional autônoma, não posso ficar parada. Pensando nisto, e na sua comodidade, resolvi criar algumas opções de “planos de faxina” e gostaria de discutir com o senhor qual deles seria o mais adequado para seu perfil.
            E lascou uma rajada de perguntas infames:
- Quantas cuecas limpas o senhor precisa por mês? E camisetas? E calças? Quantos metros quadrados de piso o senhor quer que eu encere por mês?
            Sorvi um longo gole do líquido negro e fundamental. Respirei fundo, mas quando ia abrir a boca, ela me cortou:
- Conhecendo o senhor há mais de quinze anos, tracei um perfil de suas necessidades domésticas e gostaria de lhe propor o plano “Apartment Clean Plus - ACP”, que inclui quarenta cuecas e passadas e um igual número de camisetas e calças, além de seiscentos metros quadrados de piso encerado / mês. Sugiro ainda contratar o pacote “Bathroom wash”, já que a limpeza de vasos sanitários e boxes não estão inclusas no ACP.
            Mais confuso ainda, só consegui perguntar:
- Mas e se eu tiver uma diarréia durante o mês e precisar de mais cuecas?
- Bom, cobramos dois reais por cueca limpa adicional.
            Àquela altura, já desconfiava que aquela conversa surreal era coisa da minha cabeça e tinha a ver com a lambida na barriga do sapo. Ri muito e percebi que não poderia sair de casa naquele estado. Já às gargalhadas, ainda tive forças para dizer à minha funcionária:
- Bom, vou pensar um pouco e amanhã lhe dou um retorno. Agora vou voltar para a cama porque não estou me sentindo muito bem.
            Dormi vinte e quatro horas seguidas. Acordei no sábado, sem alucinações. Aliviado, fui tirar o atraso das providências pendentes da sexta-feira perdida. Primeira tarefa, trocar o celular. No shopping, fui até a loja da operadora. Uma morena franzina e de cabelos curtos, parecendo uma personagem de mangá, me atende. “Taila”, diz seu crachá. Muito sorridente, Taila me diz que meu plano é muito desatualizado, que seria interessante fazer uma “migração”, e pergunta:
- Quantos minutos em chamadas interurbanas o senhor pretende fazer por mês?
            No mesmo tom, retruco com outra pergunta:
- Quanto tempo o veneno de sapo fica na corrente sanguínea?

domingo, 4 de março de 2012

PISTORIUS OU O ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

O genial Pistorius em ação

Já dizia o fundamental Nelson Rodrigues que “o que dá ao homem um mínimo de unidade interior é a soma de suas obsessões”. Nada mais verdadeiro, nada mais verdadeiro. Eu, na realidade, acho que minhas obsessões são uma virtude. Dito isso então, vamos a uma delas: o corredor. Já disse em algum momento e em algum lugar por aqui que, no dia em que dois macacos disputaram uma corrida, foi inventado o ser humano. E é sobre uma destas extraordinárias figuras que eu quero falar hoje. Oscar Pistorius.
            O sul-africano Pistorius é amputado em ambas as pernas abaixo do tornozelo e especialista em 400 metros. Utilizando duas próteses que mais se parecem com uma suspensão de veículos off road, ele domina a categoria em competições paraolímpicas, sendo detentor do recorde mundial dos 100, 200 e 400 metros. Porém, como se não bastasse, Oscar é conhecido por sua luta para participar de competições convencionais. Incrivelmente, depois de muita polêmica, conseguiu sua chance. Participou do mundial de atletismo de 2011 em Daegu (Coréia do Sul) e foi medalhista de prata no revezamento 4X400 e semifinalista nos 400. Mas a polêmica segue. Será que as “molas” de Pistorius lhe proporcionam maior impulsão? Impossível saber, afinal de contas, precisaríamos de um Oscar com pés para responder a esta questão.
            Particularmente, para o bem do esporte paraolímpico, eu não gostaria de vê-lo disputar competições convencionais. O que eu gostaria mesmo era de viver o suficiente para assistir ao triunfo do engenho humano e da superação: um atleta amputado tornar-se o homem mais veloz do mundo, sendo mais rápido que um atleta "normal". Velhinho em minha poltrona, gritaria para meus netinhos a famosa frase que Aldous Huxley emprestou do bardo de Stratford-upon-Avon:
- Ó admirável mundo novo, que encerra criaturas tais!