domingo, 29 de maio de 2011

AS SAÚVAS DE MÔNACO

            Minha intimidade com o automobilismo se limitou aos intermináveis rachas no Enduro do Atari 2600. Mantinha os olhos vermelhos pregados na tela enquanto, no jogo, o dia virava noite que virava dia novamente. Como se não bastassem as dificuldades de cumprir a quota de duzentas ultrapassagens/dia necessárias para passar de fase, ainda era preciso enfrentar a chuva e a neblina. Quando o Enduro perdeu a graça, nem mesmo a ascensão de Ayrton Senna me empolgou. Minhas manhãs de domingo nunca incluíram as corridas de F1. Domino apenas o vocabulário básico necessário para o papo social.

            Mas há uma corrida em especial que eu gosto de ver. Mônaco. Não sei, talvez pela ambiance, talvez pela paisagem. Acho muito bacana os carros deslizando pelas ruas e o túnel onde normalmente circulam os bólidos dos abastados moradores da Riviera. Imagino-me na sacada do Hotel Mirabeau, de frente à curva, com um Montecristo nos lábios e os dedos no copo, brincando com o gelo do single malt. “Service de chambre? você poderia me trazer mais Beluga, fazendo um favor?” (enquanto isso, lá embaixo, os motores reclamam das marchas reduzidas). Estranhamente, foi assistindo ao GP de Mônaco que eu me lembrei das saúvas. Explico.

            Na escola inventamos um esporte para exercitar nosso sadismo infantil: a rinha de saúvas. Quando soava o sinal do intervalo, apressadamente a molecada da minha sala corria procurar, perto da seringueira, por uma saúva bem parruda. Escolhido seu lutador, cada moleque convidava outro para a contenda. Tirava-se um par ou impar onde o vencedor era responsável por engalfinhar os artrópodes, afinal de contas, um Hymenoptera é pura colaboração e não luta gratuitamente com outro Hymenoptera – acho que é por isso que eles dominam o planeta e não nós. Como os duelos de gladiadores da Roma antiga, a luta só era dada como acabada quando uma das bichinhas morria. Dito assim, as regras parecem simples e justas, mas não são. Uma vez ganho o par ou impar, o pestinha podia engalfinhar os insetos como bem entendesse. Assim, bastava acomodar o pescocinho da formiga do seu colega entre as quelíceras da sua e pronto. Temos uma campeã decepadora de cabeças. O vencedor era ovacionado e seu animal ganhava a liberdade. Resumo da ópera: ganhava a rinha de formigas quem ganhasse o par ou impar. Mas o que o GP de Mônaco tem a ver com isso? Tudo. Mais uma vez, explico.

            Isso até eu sei. Um dia antes da corrida, temos a definição do grid de largada. Larga na frente, no dia D, o piloto que fez a volta mais rápida. Simples, óbvio e justo. Mas o fato é que muito dificilmente este cidadão que se deu bem na tomada de tempo do dia anterior irá perder. As ruas do principado podem ter sido feitas para os rourroices e limusines, mas não para as corridas. É praticamente impossível ultrapassar em Mônaco. Assim, o campeão de Mônaco é o vencedor do par ou impar, do mesmo modo que o vencedor das rinhas de saúva é o moleque que conseguiu a pole position no dia anterior. Ou vice versa.

domingo, 22 de maio de 2011

O DALAI LAMA DA TELEFONIA FIXA OU A PARÁBOLA DA GALINHA AMARELINHA

Eu parecia uma foca amestrada. Trepado no quarto andar da escadinha precária, segurava o globo de vidro na mão esquerda, a lâmpada queimada na direita e tinha na boca a lâmpada nova ainda na embalagem. Pensava em como faria para desembalar o bulbo luminoso usando apenas meus trinta e poucos dentes quando o telefone tocou. Não deveria, mas desci para atender. Impossível ignorar o alarme sonoro repetitivo e insistente. Então eu escutei a voz de Agnes. “Bom dia, gostaria de falar com o Sr. Rodrigo”. “O próprio”, retruquei. “Sr. Rodrigo, meu nome é Agnes e falo em nome do Banco tal para comunicar que o senhor foi selecionado para receber sem custo adicional nosso cartão Unique total flex special saphire gold com um limite pré-aprovado de tantos reais. Vamos atualizar seu cadastro?”. Foi então que aconteceu minha grande experiência numinosa, um verdadeiro êxtase religioso.

            Paradoxalmente, enquanto escutava a voz de Agnes, fui transpassado por uma onda de amor e de bondade. Eu amava todo mundo. Eu amava o mundo, eu amava a vida, Eu amava Agnes. Eu amava até o Banco tal. E seria através do amor que eu mostraria a todos o quão irritante é a abordagem do marketing telefônico. Descalcei meus chinelos para sentir o tapete felpudo sob meus pés e sentei no pufe. Senti-me tomado pelo espírito de Gandhi, Martin Luther King e outros tantos pregadores da não-violência e então contei para Agnes a “Parábola da galinha amarelinha”.

            “Agnes, minha criança, ontem foi um dia muito estranho. Logo às cinco da manhã o padeiro me ligou. Senhor Rodrigo, aqui é o Fulano da padaria tal. Gostaria de informar que o senhor tem cinco pãezinhos pré-aprovados aqui. O senhor poderia dar uma passadinha aqui para pegá-los? Às nove da manhã, atendo o telefone novamente. Senhor Rodrigo, aqui é do açougue tal, gostaria de informar que o senhor tem um quilo e meio de patinho moído pré-aprovado. Dê uma passadinha aqui para pegá-lo, ok? Meio dia e novamente o telefone. Senhor Rodrigo, aqui é da loja de calçados tal, gostaria de informar que o senhor tem um par de botas de couro de avestruz pré-aprovado aqui conosco. A que horas o senhor vem buscar? Minha doce Agnes, recebi outros tantos telefones desse naipe ao longo do dia e, como se não pudesse ficar mais estranho, às dez da noite me ligou a Galinha Amarelinha. Senhor Rodrigo, aqui é a Galinha Amarelinha e eu trabalho na granja Watanabe. Gostaria de informar que tenho um ovo na cloaca já pré-aprovado para o senhor. Por favor, a que horas o senhor vem buscá-lo para que eu possa providenciar a postura? Como você bem pode imaginar, Agnes minha flor de lótus, estava cansado da insistência telefônica e disse à ave que aquilo era impossível, pois galinhas não falam. A pobre Galinha Amarelinha me disse que o Senhor Watanabe estava muito bravo pois no ano corrente o lucro da granja havia crescido apenas trinta por cento em relação ao ano anterior e que se elas (as penosas) não impulsionassem as vendas, virariam caldo Knorr. Relativizei dizendo que eu entendia sua situação, que a vida está dura, que todos temos contas a pagar e que precisamos fazer dinheiro. Mas então contei todo o meu dia para a Galinha e lhe perguntei se, apesar da necessidade de ganhar a vida, ela gostaria de viver num mundo onde as pessoas vivessem ao telefone sendo informadas de todos os produtos pré-aprovados”.

            Alias, Agnes, meu pequeno gafanhoto, você gostaria de viver num mundo assim?

“Tu...tu...tu...tu...tu...tu”

sexta-feira, 13 de maio de 2011

O DIA EM QUE A VOLANTE DE OBAMA LASCOU O DESINFELIZ OSAMA

          Diz a Wikipedia, no verbete sobre Lampião, que a volante do Tenente João Bezerra chegou de mansinho no acampamento do rei do cangaço na fazenda Angicos e fez um estrago. Onze foram metralhados e morreram ali na hora. Poucos fugiram. Na euforia do dever cumprido, os soldados decapitaram os corpos, salgaram as cabeças e as colocaram em latas de querosene contendo aguardente e cal para conservação. Orgulhoso, o tenente João desfilou pelas cidades de vários estados nordestinos atraindo multidões com sua coleção de troféus macabros.
            Na casa Branca, Obama reuniu-se com autoridades de segurança, seu vice, Hillary e um monte de assessores para assistir a operação de caça ao nefasto Osama. Não sei, não vi. Mas imagino que tenha sido igual a assistir seu filho jogar Counterstrike. Do conforto da “Situation room”, o presidente viu Bin Laden tomar um ou mais pipocos, fez um gargarejo com água de romã e foi anunciar as boas novas. Do celular o vice John Biden mandava torpedos para os líderes do mundo livre: “Obama matou Osama. Bjão!”. Apesar do apelo por sangue das águias republicanas, Obama já foi avisando:
- Não vai ter cabeça em lata de querosene, não. O cabra já virou fishfood
            Longe de mim achar que o abjeto terrorista merecia destino melhor. Mas não tenho a ilusão de que o mundo está mais seguro. Em terra sem lei, quando um narcotraficante, terrorista, cangaceiro ou mosquito da dengue é morto, logo surgem seis dúzias para disputar o lugar vago.

domingo, 1 de maio de 2011

SOBRE FRAQUEZAS HUMANAS

Hoje houve a semifinal do paulistão 2011. Quis a sorte que meu time levasse imerecidamente a melhor. Mas isso não vem ao caso, pois o que eu quero é comentar sobre fraquezas humanas. Explico: sou um ressentido. Como sapos de macumba, acumulei nas encruzilhadas das minhas quase quatro décadas de existência um sem número de ressentimentos. O maior deles, sem dúvida, é o fato de eu ser um perfeito perna-de-pau quando o assunto é futebol.
 Sou grosso de dar dó. Dá pena a falta de intimidade que tenho com o objeto esférico e saltitante que tanta alegria dá ao povo brasileiro. Durante a infância e adolescência, sobrevivi às críticas de meus cruéis amigos de peleja me tornando um zagueiro destruidor. Tão útil quanto um cachorro que toma conta de um ferro-velho, assistia aos meus coleguinhas lépidos singrarem a quadra com a pelota nos pés. Um gol meu acontecia com a mesma freqüência dos eclipses solares. Sombriamente cumpria minha função defensiva enquanto minha inveja crescia. Ai está. A fonte do meu ressentimento é o craque.
 Pior ainda quando a virtude futebolística vem acompanhada da irreverência. A certeza do talento e a arrogância daquele que sabe o que fazer com a bola nos pés provocam violentas descargas de ácido clorídrico em meu estômago. A folha seca de Didi, o elástico de Rivelino e, mais recentemente, as embaixadinhas de Edilson e a reboladinha de Edmundo fazem de mim um Otelo do esporte bretão. Mas, oh dia fortuito! Hoje tive minha vingança. E ela se materializou na figura do chileno alviverde Valdívia, o homem do “chute no vácuo”. Para ser preciso, o doce momento aconteceu aos vinte minutos do primeiro tempo, durante a execução da malfadada traquinagem.
Durante toda a semana, vim acompanhando a “polêmica”: seria desrespeito ao adversário o tal artifício? É um drible humilhante? O fato é que hoje o Mago tentou fazer das suas frente a um dos nossos rapazes e cometeu uma auto-falta: estiramento. Ganindo, pediu para sair. Do conforto da minha poltrona, com a boca cheia de salame e brandindo minha lata de cerveja, vaticinei como um moleque malcriado: Bem feito.