domingo, 26 de fevereiro de 2012

PERTO DE JUSTUS SOU COMO SÃO FRANCISCO DE ASSIS

Justus no sambódromo paulistano

E eis que passou outro carnaval e como acontece todo santo ano, os brasileiros se dividiram entre aqueles que adoram as folias de momo e aqueles que detestam. Longe de mim ser ou parecer hipócrita, mas o fato é que até vinte anos atrás eu me incluía no primeiro grupo, hoje porém, me identifico mais com o seguinte. E antes que eu seja acusado de vira-casaquismo, explico.
            Até meus vinte, vinte e um anos, eu sempre adorei o carnaval. Não que tivesse algum interesse pelo aspecto cultural da coisa. Bonecos de Olinda, Marquês de Sapucaí, marchinhas e sambas não me despertavam interesse algum. O que eu gostava mesmo é que, durante quatro dias, eu podia liberar os mais baixos instintos e cair numa farra dionisíaca. Se a trilha sonora do nosso carnaval fosse, digamos, as valsas vienenses, não faria a menor diferença. Lá estaria eu, canalha, com um copo de uísque na mão sussurrando ao pé do ouvido das mocinhas:
-Queres ir lá for ver quão azul é o Danúbio?
            Mas, como já disse, isso tudo mudou. Com a pessoa certa ao meu lado e com o fígado reclamando até de uma inocente cervejinha, participar do carnaval me parece despropositado. Assim, me bandeei para o lado dos não-foliões e passei quatro dias curtindo família, filmes, livros e dando um adianto no trabalho. Só esbarrei com o inevitável skindô-skindô durante os noticiários. No meio de tanto tamborim, lantejoulas e euforia, um fato me chamou a atenção: Roberto Justus foi homenageado pela escola de samba paulistana Rosas de Ouro. Mais uma vez, explico.

            Dentre meus defeitos, eu sempre incluí um certo excesso de vaidade. Alguns centímetros a mais de circunferência na cintura me causam verdadeiro pavor. Acompanho com apreensão minha testa avançar sobre o couro cabeludo enquanto retiro à pinça alguns pelos esquisitos que insistem em crescer nas orelhas. Mas durante este último carnaval vi que, comparado a Roberto Justus, eu não passo de um Gandhi, Madre Teresa de Calcutá ou melhor: São Francisco de Assis. Vestido de membro da realeza, o grande publicitário e genro da “Garota de Ipanema” pagou não sei quanto ou fez sei lá qual favor para ser homenageado no sambódromo paulistano. Depois dessa, meus caros, vou vestir minhas alpercatas, amarrar um cinto de corda à cintura e dar de comer aos meus amigos pombos, coelhos e carneirinhos.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

EM DEFESA DE PEDRO BIAL OU O NOVO PACTO MEFISTOTÉLICO

Bial à época da queda do muro

De tempos em tempos somos acometidos de uma fúria intelectualóide. Isso já aconteceu várias vezes antes, mas agora as tais redes sociais fazem este fenômeno se propagar mais rapidamente e atingir maiores proporções. De um momento para outro, começamos a achar que “o nível está baixo” e colocamos a culpa na telinha luminosa. Esquecemo-nos que a boa e velha TV nada mais é que uma vitrine para nos empurrar cartões de crédito, margarina e fatiadores supersônicos de pepino. A novela, o futebol e os programas em geral são iscas para nos manter sintonizados.
            Verdadeiros paladinos da bagagem cultural de nossos filhos, elegemos o Judas da vez: Pedro Bial. Se como eu você estiver batendo às portas da quarta década de vida, há de se lembrar do charmoso repórter Bial vestindo um jaquetão marrom com ombreiras enormes e gola levantada anunciando, bem no meio do “vuco-vuco”, a histórica queda do muro de Berlim. Hoje, você liga a TV às dez da noite e torce o nariz quando vê Pedro lhe convidar para embarcar na “nave mãe do BBB” e dar uma “espiadinha em nossos heróis”. Esquecendo-se que o cara é amante de Guimarães Rosa, poeta, escritor, diretor de filmes e documentários, além de jornalista e biógrafo, você sacode a cabeça decepcionado e diz para si mesmo:
-É, Bial. Quem te viu quem te vê...
            Portanto, se você é destes cavaleiros da alta cultura, eu proponho o seguinte exercício ético. Imagine que o mefistotélico Craig Nelson, CEO da Loteria Universal, aparece na sua casa e toca a campainha. Você o convida para entrar e passa um cafezinho para ele. Muito educado, ele sorve um gole do maravilhoso líquido, agradece e, tirando do bolso uma pequena tanga tipo fio dental revestida de lantejoulas verdes muito brilhantes, lhe faz a proposta:
- Vou direto ao assunto. Vim aqui lhe propor um trabalho. É simples. Está vendo esta tanga? Tudo que você tem a fazer é vesti-la e, na terça-feira gorda às quatro da tarde, desfilar sozinho e rebolando na rua Major Prado, da Igreja de São Sebastião até a Matriz Nossa Senhora de Aparecida, ao som de “Exaltação à Mangueira”. Para isso, você vai ganhar hum...digamos...trezentos mil dólares livre de impostos.
            Bom, eu não sei quanto a você, mas posso dizer que eu engoliria o pudor de meus glúteos brancos e ondulantes e responderia:
- Posso ao menos passar um Hipoglós?

domingo, 12 de fevereiro de 2012

BLADE RUNNER NO JARDIM PAULISTA

Chuva, fumaça, neon e Roy Batty (Rutger Hauer)

       Nasci em 1972, mas durante toda esta década eu não passava de um moleque muito louro e cabeçudo, com cabelos em forma de capacete, que jogava bola de mocassim sem meias e tinha uma cacharrel com um pinguinzinho no peito que fazia “Fiu Fiu” quando pressionado. Estilo, estilo mesmo eu desenvolvi foi nos anos 80. Usei calça de popeline da OP, relógio Champion que trocava pulseira, camiseta lilás, verde limão e laranja. Tinha carteira emborrachada, cabelo raspado e uma franja oxigenada que ia até o queixo. Era um “Manual dos anos 80” ambulante. Cada filme, moda, brinquedo, música daquela década eu assisti, segui, brinquei e escutei.
            Hoje os anos oitenta são pintados como uma década fútil, vazia e yuppie. Não tinha a inocência romântica dos anos 50, o charme revolucionário dos sessenta, nem a porralouquice disco dos 70. Injustiça. Nada mais nada menos que a melhor produção cinematográfica de todos os tempos pertence aos achicalhados anos 80. 
         Baseado num pequeno romance de Phillip K. Dick, “Blade runner – o caçador de andróides” conta a história de Deckard, um policial que tem por missão capturar quatro andróides foragidos que são mais humanos que os próprios humanos. Como se não bastasse o incrível roteiro, o visual é igualmente sensacional. Los Angeles decadente, escura e apinhada de gente falando uma mistura de japonês, espanhol e inglês. A combinação da chuva onipresente e da fumaça dos carros com o brilho do neon resultam num efeito belíssimo, emoldurado pela trilha sonora de Vangelis. Inesquecível. Mas a verdade é que eu contei tudo isso porque esta semana tive uma espécie de epifania bleidirrânica
      Chovia uma chuva bíblica quando saí da garagem e ganhei a Rua Batatais. Coincidentemente, o CD tocava “Blade runner end Theme” quando cheguei na esquina e vi, por entre os pingos, uma enorme placa de neon escrito “Rodoviária Jardim Paulista”. Entre os dentes, declamei:

“Vi coisas que vocês, homens, nem imaginam.
Naves de guerra em chamas na constelação de Orion.
Vi raios-C resplanderem no escuro, perto do Portal de Tannhaüser.
Todos esses momentos se perderão no tempo...como lágrimas na chuva.
Hora de morrer.

            E então, tive vontade de me ajoelhar na rua e de soltar uma pomba branca, como o robótico Roy Batty (vivido por Rutger Hauer) fez no filme. Mas tudo o que fiz foi arrancar com o carro, feliz por poder ver beleza em coisas tão prosaicas.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

EMIL ZATOPEK OU A LOCOMOTIVA HUMANA

Zatopek (à esquerda) e Mimoun

Aconteceu há muitos anos atrás. Muitos. Dezenas de milhares, para ser mais preciso. Dois macacos pelados encontraram-se na savana. Um deles levava uma clava, o outro, uma clava e um preá morto, atado à cintura. O macaco sem preá falou:
-Quero seu preá.
            O macaco com preá rebateu.
-Nem a pau!
            Conhecendo os milhões de anos de evolução dos macacos pelados até aquele instante, qualquer um poderia prever que uma contenda como aquela terminaria invariavelmente com pelo menos um crânio esmagado a pauladas. Mas então tudo mudou. Surpreendentemente, o macaco com preá disse:
-Está vendo aquele baobá lá longe? Quem chegar primeiro leva o preá.
            E correram. Calhou de ganhar o macaco sem preá. O adversário, sem maiores reclamações, desamarrou o preá da cintura e ofereceu o bicho ao outro macaco pelado dizendo:
-Parabéns.
            Ao que o outro respondeu
-Obrigado.
            Apertaram-se as mãos e foram embora, vencedor e vencido, com os crânios intactos. Não se ouviu guinchos intimidadores, nem urros violentos. Apenas um suave menear de cabeça e o civilizado “Obrigado”. Inventava-se assim, num único momento aparentemente banal, a corrida, o troféu, o campeão e, mais importante, o ser humano. Perceba-se então que o corredor é a essência do humano. E ninguém representou melhor esta essência que o grande Emil Zatopek, mais conhecido como a locomotiva humana.
            Emil já havia conquistado uma medalha de ouro olímpica nos 10.000 m e uma de prata nos 5.000 m em Londres quando foi para os jogos de Helsinque, em 1952. No primeiro dia, e com imenso favoritismo, ganhou fácil sua segunda medalha de ouro olímpica nos dez mil. Um dia depois, papou o ouro nos cinco mil. Mas então, quando todos acharam que Zatopek já havia terminado sua incrível participação nos jogos, ele foi sublime. De última hora, resolveu participar da maratona, prova que ele nem treinava. Sem a menor idéia do ritmo que deveria se impor, decidiu seguir o líder. Vinte e cinco quilômetros depois, achou que o líder estava lento demais e disparou, chegando dois minutos e meio à frente do segundo colocado.
            Quatro anos depois, um Emil combalido por uma hérnia tentou defender a medalha de ouro na maratona. E então ele foi mais humano do que locomotiva. Ao chegar em sexto lugar, foi cumprimentado efusivamente por seu grande amigo e rival Alan Mimoun, o vencedor. Mimoun, além de francês, era freguês e já havia perdido três finais olímpicas para Zatopek, que sempre o consolova, consternado:
-Sua hora vai chegar.
            E quando ela finalmente chegou, há quem jure que Emil, fora do pódio, estava mais feliz do que jamais esteve num final de prova. Abraçado a Mimoun, gritava em seu ouvido:
-Você conseguiu, meu amigo.
            E pensar que tudo começou com um preá...