As cinco e quarenta e cinco da manhã, o alarme do despertador soa como as trombetas que anunciam o fim do mundo. Algum gênio do mal projetou o infame eletroeletrônico de modo a tornar o desligamento de seu berro maldito tão complexo que se faz necessário sentar na cama para encontrar o minúsculo botão “off”. Imediatamente aliviado da tortura auditiva, mas irreversivelmente acordado, olho para o berrante display verde onde os números enormes anunciam: “Cinco e quarenta e seis”.
O quarto continua tão escuro quanto estava à hora em que me joguei na cama de braços abertos tal qual o Cristo Redentor. Automaticamente sigo para o banheiro, desviando inconscientemente das meias, sapatos e havaianas dispostas pelo caminho. Acendo a luz e recebo a violenta chicotada de fótons na retina. Suporto a dor com hombridade e encaro a criatura devastada no espelho. Os fios que restam na cabeça parecem um bando de suricatos em alerta. As dobras dos lençóis estão fielmente carimbadas nas têmporas e os olhos têm um “quê” asiático. Os beiços estão inchados e é possível sentir e ver, saindo da boca, um hálito pestilento e um rastro de baba seca craquelada, parecido com os leitos vazios dos rios temporários do semi-árido brasileiro. Fico contente em ver que o abdômen parece menor e crio a primeira teoria do dia: “Ficar na horizontal por mais de cinco horas espalha mais a gordura corpórea, dando a impressão de que a barriga é menor”. Apoio as duas mãos na pia, encolho os ombros e dou um suspiro tão longo quanto há de ser meu dia. Eis então que tenho a idéia brilhante. A mesma idéia brilhante que tenho diariamente há décadas: uma xícara de café.
Giro os calcanhares e vou até a cozinha. Fervo dois copos de água enquanto visto o porta-filtros com um Melita 103 cujas bordas foram carinhosamente dobradas. Encaixo tudo na boca da garrafa térmica e acrescento duas colheres de sopa bem grandes de pó. Neste ponto, a água já ferveu e então a mágica começa. Mal acabo de verter o fumegante solvente universal sobre o material negro e o familiar aroma já começa a lubrificar meus neurônios. Impaciente, não espero nem acabar o processo de filtração para já encher minha caneca. Quinze gotas de zerocal. O primeiro gole e a solução de todos os problemas do dia começam a espocar na minha mente. Depois da primeira caneca, tomo um banho rápido e me vejo frente ao espelho mais uma vez. Nem sinal do monstro de dez minutos atrás. Enquanto escovo os dentes, constato que, de cabelos domados, até que não pareço tão careca. Na verdade, tenho é uma testa muito alta que parece combinar com os olhos verdes e com o grande nariz romano. Os sulcos impressos pelos lençóis já não são mais visíveis, pois minha pele ainda é suficientemente elástica para retornar à sua forma original rapidamente. Faço as pazes com meu rosto, mas não com a barriga. Vinte minutos na vertical bastaram para o tecido adiposo voltar para os quadris. Mesmo assim, sigo contente, pois isso é mais um ponto a favor da minha teoria.
Visto calça, camisa e sapatos. Ponho a mochila nas costas, meu escritório portátil. Mesmo de dentes escovados, não resisto. Esvazio a garrafa térmica. Só mais um golinho, sem adoçante mesmo. Nestes últimos instantes antes de sair de casa, olho para o belo anel negro contrastando com o branco da porcelana no fundo da caneca e penso. Café, você é a mais sutil de todas as drogas. Você torna as manhãs tão mais fáceis! Eu te amo, Café. Não importa quão amarelos fiquem meus dentes ou quantos furos você faça em meu estômago. Eu nunca vou te abandonar.
rsrs, ótimo. Você escreve com muito humor o dia de todos nós! É tudo igual, com pequenas variantes... Muito agradável a narrativa de como as coisas se repetem. E como nos enxergamos sem produção, após horas de sono. Pra lá de amarrotados.
ResponderExcluirBjs / tais