Um velho e doce amigo me ligou esta semana e deu a mais amarga das notícias. Tinha câncer. Pior, no cérebro. Durante a ligação, entre constrangido e engasgado, sondo para saber maiores detalhes:
- E os prognósticos?
- Não tem prognóstico. É grau quatro.
Não faço idéia do que seja grau quatro, mas nem preciso perguntar para saber que deve ser grave. Ou melhor, gravíssimo. Cinco segundos de silêncio constrangedor enquanto penso num consolo via Embratel. Não encontro. Tudo que consigo dizer é:
- Cara, desejo o melhor para você.
E desvio o assunto para banalidades e recordações do tempo em que nossa amizade compartilhava a rotina do dia a dia.
“O trânsito de São Paulo está impossível. Um dia essa cidade pára”.
“E fulano? Onde anda?”
“Bla bla bla”.
Não sei por que, mas achei que um pouco de normalidade, desviar o assunto que lhe deveria assombrar as idéias durante vinte e quatro horas por dia, era o melhor a fazer. Desliguei o telefone com um “a gente vai se falando” e comecei a pensar sobre essa doença funestra.
Há um tempinho atrás, mais ou menos uns três ou quatro bilhões de anos, um grupo de células que nadava no caldo primordial tiveram a idéia genial: criaturas multicelulares. Para isso, era preciso definir muito bem os papéis. Todo mundo teria que ficar bem unido e bem comportado, enquanto umas células captavam nutrientes, outras formavam uma camada protetora, outras ainda eram responsáveis pela mobilidade da criatura e por aí vai. Eis que essa idéia foi tão longe que originou um bicho muito esperto, vulgarmente chamado de “homem”. Quem o faz ser tão esperto é justamente um grupo de células bem guardadas no topo de uma caixa óssea chamada “cabeça”. E é justamente aí o problema do meu caro amigo.
Anarquicamente, algumas destas células cerebrais decidiram multiplicar-se a esmo, sem o menor controle. Romperam o sagrado pacto juramentado há bilênios (se é que existe essa palavra). Eu, do alto da minha incapacidade, só posso praguejar: maldita seja a rebeldia celular.