domingo, 30 de outubro de 2011

REBELDIA CELULAR

           Um velho e doce amigo me ligou esta semana e deu a mais amarga das notícias. Tinha câncer. Pior, no cérebro. Durante a ligação, entre constrangido e engasgado, sondo para saber maiores detalhes:
- E os prognósticos?
- Não tem prognóstico. É grau quatro.
            Não faço idéia do que seja grau quatro, mas nem preciso perguntar para saber que deve ser grave. Ou melhor, gravíssimo. Cinco segundos de silêncio constrangedor enquanto penso num consolo via Embratel. Não encontro. Tudo que consigo dizer é:
- Cara, desejo o melhor para você.
            E desvio o assunto para banalidades e recordações do tempo em que nossa amizade compartilhava a rotina do dia a dia.
“O trânsito de São Paulo está impossível. Um dia essa cidade pára”.
“E fulano? Onde anda?”
“Bla bla bla”.
            Não sei por que, mas achei que um pouco de normalidade, desviar o assunto que lhe deveria assombrar as idéias durante vinte e quatro horas por dia, era o melhor a fazer. Desliguei o telefone com um “a gente vai se falando” e comecei a pensar sobre essa doença funestra.
            Há um tempinho atrás, mais ou menos uns três ou quatro bilhões de anos, um grupo de células que nadava no caldo primordial tiveram a idéia genial: criaturas multicelulares. Para isso, era preciso definir muito bem os papéis. Todo mundo teria que ficar bem unido e bem comportado, enquanto umas células captavam nutrientes, outras formavam uma camada protetora, outras ainda eram responsáveis pela mobilidade da criatura e por aí vai. Eis que essa idéia foi tão longe que originou um bicho muito esperto, vulgarmente chamado de “homem”. Quem o faz ser tão esperto é justamente um grupo de células bem guardadas no topo de uma caixa óssea chamada “cabeça”. E é justamente aí o problema do meu caro amigo.
            Anarquicamente, algumas destas células cerebrais decidiram multiplicar-se a esmo, sem o menor controle. Romperam o sagrado pacto juramentado há bilênios (se é que existe essa palavra). Eu, do alto da minha incapacidade, só posso praguejar: maldita seja a rebeldia celular.

domingo, 23 de outubro de 2011

O CÚMULO DA GANÂNCIA

         Seu Firmino era jardineiro contratado pela Prefeitura Municipal de Petúnias. Passava o dia na carroceria da caminhonete, indo de canteiro em canteiro, carpindo um matinho aqui, plantando uma maria-sem-vergonha ali. E a cada centímetro carpido ou muda plantada, dava uma paradinha de uns cinco minutos para curtir uma sombrinha e enrolar um cigarrinho. Tinha o hábito de bater nas portas das casas para pedir um copo de água. Tudo desculpa para um dedo de prosa. Antigamente podava árvores também, mas agora a idade já não permitia. No fim das contas, estava só esperando a aposentadoria. Era um tipo. Paradoxalmente seu uniforme de trabalho, de brim verde, estava sempre impecavelmente engomado e limpo. Ao invés de botas, calçava sapato social. Para se proteger do sol, usava um chapelão de palha de abas exageradamente grandes que, com os bigodes fartos, lhe dava um ar de Pancho Villa.
            Religiosamente passava na lotérica e fazia uma fezinha na megasena. Uma vez ganhou. Acertou os seis dos sessenta números possíveis. Sessenta milhões de reais. E então o absurdo aconteceu.
            Apesar do sigilo, não se sabe como o sujeito descobriu. Mas o fato é que, no dia seguinte ao feliz sorteio, parou uma caminhonete Silverado preta com detalhes cromados muito brilhantes na porta da casa de Seu Firmino. Dela desceu um homem muito elegante e educado. Entrou para um cafezinho e fez a seguinte proposta para Seu Firmino:
            - “Seu Firmino, meu nome é Craig Nelson e represento a Loteria Universal. Deixe-me explicar melhor. A Loteria Universal é um concurso onde só entram pessoais mui especiais, como o Senhor. Para participar, é simples. É como a Megasena, mas com algumas alterações. O Senhor escolhe dez números entre cem números possíveis, os sorteios são mensais e, se acertar, leva a bolada de cem bilhões de reais. O bilhete custa sessenta milhões”.
            O jardineiro não hesitou. Pegou o talão de cheques, comprou um bilhete onde marcou os seguintes números: 14, 25, 87, 90, 43, 21, 22, 23, 99 e 04. O sorteio foi na sexta-feira. Não ganhou. Os amigos e vizinhos de Seu Firmino ficaram divididos. Aqueles que eram evangélicos acharam que o homem da Silverado preta era o capeta que veio à Terra para tentar Seu Firmino. Os demais acharam que Seu Firmino era burro mesmo.

domingo, 16 de outubro de 2011

NOTAS TURCAS III OU INDO MUITO LONGE

Chego do Congresso louco para tirar a camisa de mangas longas e a calça jeans coladas ao corpo de tanto suor e impregnadas dos cheiros de tantos sovacos internacionais. No quarto do hotel, tiro tudo, jogo em cima da cama e coloco minha bermudona florida. Olho para o espelho, dou um tapa na pança e, enquanto observo as ondas de choque se espalharem pelo meu abdômen, concluo que pareço um surfista hipercalórico.
            Vaidades à parte, chego à praia e meto as canelas nas mornas águas do Mediterrâneo. Enquanto caminho, sinto a massagem relaxante das pedrinhas muito pequenas e arredondadas nas solas dos pés. Na paisagem ao fundo, uma belíssima cadeia de montanhas com um por do sol tão clichê e bonito que até dói. Tento pensar em coisas belas que Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade ou Vinícius de Morais diriam e morro de inveja, porque tudo que consigo pensar é:
            - Se eu fosse Luke Skywalker e estivesse em Tatooine, estaria vendo dois sóis se porem.
            Envergonhado de um pensamento tão pop num momento tão absoluto desses, volto para o hotel e encontro, próximo ao bar da piscina, um garoto com o indefectível nariz turco mas com estranhos olhos trágicos de cantor de tango. Até onde posso entender, seu nome é alguma coisa como Erguelen. Erguelen tem ao seu lado um telescópio apontado para o espaço com um pequeno cartaz escrito à mão afixado onde se lê: “Observing is free”. Quando pergunto o que é possível observar no céu naquele dia, ele me mostra Júpiter e me explica excitado, num inglês quase sem sotaque, que os pontinhos pretos que posso observar ao seu redor são suas quatro luas.
            Agradeço ao pequeno Erguelen e, enquanto me encaminho ao restaurante para encarar mil tipos de pratos à base de berinjela, penso que tive que ir até a Turquia para visitar Júpiter e suas luas. Este sim é o pensamento profundo que estava procurando.

domingo, 9 de outubro de 2011

O DIA EM QUE ENCONTREI ADOLF, O CRÁPULA, NAS LOJAS AMERICANAS

Aquele que afirma que o futebol é o esporte preferido do brasileiro é um sujeito muito mal informado. O esporte preferido do brasileiro é, de longe, garimpar DVDs nas Lojas Americanas. E eu, tendo nascido sob este céu cor de anil - um legítimo filho deste solo, não haveria de ser diferente. No Shopping, sábado à noite, tomo uma casquinha mista e sigo para as prateleiras repletas do referido produto audiovisual. Estendo a mão sobre a fileira de caixinhas plastificadas e, dando pequenos passos com o indicador e o dedo médio, os títulos se sucedem à minha frente. Ben Hur, Ivanhoé, Top gun, outro Ben Hur, uma sequência de noviças rebeldes. Outro Ben Hur. Respiro fundo. Como os antigos sonhadores de Serra Pelada e em meio ao caos maçante, sigo na busca do título inusitado, único. Aquele filme que sempre quis assistir e não sabia existir em DVD.
            Eis então que topo com o abominavelmente instrutivo “Triunfo da vontade”, de Leni Riefenstahl. Cabe a explicação. Em 1934, Hitler encomendou a sua muito talentosa cineasta preferida, um documentário sobre o Sexto Congresso de Nuremberg. Fico curioso. Sempre assisti a documentários onde o Bigodinho aparece em meio a bombardeios ou inspecionando tropas. Como seria ver a Alemanha e seu líder quando tudo era progresso e confiança? Comprei e conferi na mesma noite. Brevemente, eis as impressões. Em tempos em que o som é uma novidade no cinema, o filme é transpassado por marchas militares e discursos inflamados. Durante setenta por cento do tempo, o "Fürher" desfila numa Mercedes conversível pelas ruas apinhadas de gente de uma Nuremberg coalhada de antigas construções históricas. Siege heil pra cá, Siege heil pra lá. E dá-lhe mão direita esticada, crianças, mulheres e soldados sorrindo. Uma pérola: “Um povo que não cultiva a pureza de sua raça há de perecer”. É demais para mim. Dou um stop e vou ler o jornal, mais especificamente os cadernos de política e esporte.
            Em “política”, as tramóias de sempre. Sarney se safa de mais uma investigação. Tentativas de aprovação de um novo imposto para a saúde. Mascarado de medida de apoio a Indústria nacional, Dilma defende o novo IPI para os carros importados. Waldemar da Costa Neto, Jaqueline Roriz e Renan Calheiros. Sorrio feliz. É melhor uma democracia torta destas que um regime baseado na certeza de um louco munido da procuração de toda uma nação. Abro a página de esportes. Na foto, Lucas e Neymar, dois moleques cor de caramelo que moeram a zaga argentina no último amistoso. Sorrio feliz novamente. Basta um peteleco, uma foto na seção de esportes, para derrubar toda a idéia da superioridade ariana. Meu conselho: assista ao filme. E enquanto estiver fazendo isso, chame seu filho na sala, aponte o dedo para a tela e diga “Eis aí um grande filho da puta”. 

domingo, 2 de outubro de 2011

NOTAS TURCAS II OU O CACHORRO PAVLOVIANO DO PADRE CHIQUINHO

Eu e minha muito amada irmã temos uma diferença de seis anos. Não que fossemos como Caim e Abel, mas como acontece em toda família saudável, durante nossa infância e adolescência tínhamos brigas de proporções épicas. Um desentendimento acerca do que ver na TV e resolvíamos a contenda esgrimindo rodinho contra piaçava. Qualquer colher de pau, cinzeiro, saca-rolhas ou porta-retratos virava uma arma de longa distância. Os famigerados tamancos de madeira, moda na época entre as meninas e que faziam um irritante teleque-teleque no caminhar eram particularmente mortíferos. Pior para mim, que vivia descalço. Quando ela “adolesceu” e eu continuei um moleque boboca, ela começou a aplicar técnicas psicológicas de tortura. Exemplo:
- Sabia que você não é filho do papai e da mamãe? Você foi pego na lata do lixo.
- Mãe! Ela falou que eu fui pego na lata do lixo.
- Mentira, meu filho. E você, vê se para de atazanar seu irmão com essas besteiras!
E então minha irmã virava e falava baixinho no meu ouvido:
- Bobo, você acha que ela iria te contar a verdade...
            Entre tantas outras, a melhor era a do cachorro pavloviano. Explico. Se você é jauense ou viveu em Jaú durante a época do padre Chiquinho, há de se lembrar que lá pelas cinco da tarde, o padre tocava trilhas sonoras de filmes de bangue-bangue nos megafones da igreja Matriz para chamar os fiéis à missa diária. Para mim, esses chamados significavam outra coisa: ir para casa e tomar banho. E então, ao som dos assovios de “O dólar furado”, eu corria para casa e entrava esbaforido. Minha irmã ria e falava “Que bonitinho! É só escutar a musiquinha que ele vem rapidinho. Parece o cachorro do Pavlov. Reflexo condicionado puro!”. Minha mãe dava a necessária bronca, mas era inevitável rir. A piada era muito boa. A mim, só restava ficar duplamente irritado. Primeiro porque minha mãe ria e segundo porque eu não entendia nada.
            Istambul, 10 de setembro de 2011. Enquanto caminho pelo antigo hipódromo próximo à praça Sultanahmet, ecoa pelos minaretes da estonteantemente bela Mesquita Azul, o chamado às preces: “Allah Akbar...Allah Akbar...Allah Akbar...Allah Akbar…”. Meus companheiros de viagem logo se emocionam com esse exótico toque de cultura islâmica. Quanto a mim, amaldiçôo minha linda irmã, pois tudo o que sinto é vontade de tomar banho.