domingo, 25 de dezembro de 2011

NOEL, O FOLGADO

Dica: Fique ridículo
usando o photoshop
            Sidra quente, fios de ovos, tender, bolo e cerveja. Eis a receita para gerar uma jaguatirica incandescente em seu estômago. E foi este incômodo felino que me acordou às três da manhã de natal. Sentindo suas unhas arranhando meu piloro, levantei em busca da garrafa de água gelada. Em direção à cozinha, achei que ainda estava dormindo quando olhei para a poltrona da sala de tevê e vi a inconfundível figura natalina. Estava passando “Esqueceram de mim”, e o velho Noel tinha no colo uma caixa aberta de especialidades Nestlé. Era engraçado como o bom velhinho ria das caretas de Macaulay Culkin, lambendo as pontas dos dedos cobertos de chocolate. Folgado, pelo menos ele teve o bom senso de tirar as botas antes de descansar os pés sobre o pufe.
            Incrédulo, me aproximei de Noel. Ele tomou a garrafa das minhas mãos, tomou um gole e disparou, sem tirar os olhos da tevê:
            “E aí? Você foi um bom menino?”.
            “Claro”, respondi. Continuei.
            “Mas me fala uma coisa. Você não tinha que estar por aí, distribuindo presentes?”.
            O velho levantou os olhos em minha direção e disse:
            “Você é burro ou o quê? Não sabe é que são os pais que compram presentes para seus filhos?”.
            Não me acuei ante a obviedade da afirmação e segui argumentando:
            “Bom...eu pensava isso antes de saber que você realmente existia. Agora eu já não sei...”. Era uma boa resposta, e o velho reconheceu, balançando a cabeça em aceitação. Pegou o controle remoto, abaixou o volume e disse:
         “Olha só...as pessoas confundem as coisas. Realmente, na noite da véspera de natal eu saio de trenó para dar um rolê por aí. Paro numa casa, como um sanduba de pernil. Vou à outra, como um peruzinho, roubo uma latinha de skol. De vez em quando, um moleque acorda para mijar e me vê assaltando as sobras da ceia. Ingênuo, o guri acorda no dia seguinte, abre o presente e pensa que fui eu quem deu”. E finalizou:
            “Agora que você já sabe a verdade, meu bom garoto, tome um pepsamar e vá dormir. Agüinha gelada não vai resolver”
            Quando acordei na manhã de natal, os adultos estavam à mesa. Enchi minha caneca com o líquido negro fundamental e quinze gotas de zerocal e sentei-me junto a eles. No chão, as crianças rasgavam furiosamente os pacotes. Minha irmã, filosófica, perguntou:
            “Irmão, você não tem saudades do tempo em que éramos criança e acreditávamos em papai Noel?”
            Segurei a caneca entre as palmas das mãos para sentir sua quentura. Sorvi um longo gole, e depois respondi:
            “Não”.

domingo, 18 de dezembro de 2011

O DIA EM QUE CHARLES BRONSON FUZILOU A CADELA DA MINHA MADRINHA

Paul Kersey (Charles Bronson) e sua estranha pistola de cano longo

Normalmente aos domingos, depois que eu traçava meu macarrão com frango requentado e Didi, Dedé, Mussum e Zacarias se empirulitavam, eu ia para a cama. Mas às vezes era anunciado que no “Domingo Maior” iria passar algum dos cinco filmes da série “Desejo de Matar”, com Charles Bronson. Aí eu me obrigava a aguentar o “Fantástico, o show da vida”, para assistir ao banho de sangue do fim de noite. Na série, Bronson era Paul Kersey, um cidadão comum que, após ver sua mulher morta a tiros e sua filha estuprada por três bandidos, passa a sair na noite para fazer “justiça” com sua estranha pistola semi-automática de cano longo. Eu ficava impressionadíssimo com aquilo.
            Àquela época, minha saudosa madrinha tinha uma cachorra horrorosa chamada Nina, que ela havia recolhido das ruas. Era uma vira-latas magricela, de cor esverdeada e dorso negro, cujas unhas muito compridas faziam “fiz fiz fiz” quando andava pela casa. Estava sempre de dentes arreganhados e não admitia que ninguém chegasse perto de sua dona. Mordia a mim e meus pobres primos sem o menor motivo aparente. Seu único ponto fraco eram os rojões e, durante as grandes decisões futebolísticas ou comemorações cívicas, o desprezível animal se escondia covardemente sob a mesa da copa. Eu detestava aquela cadela e ela estava prestes a sentir a fúria de Paul Kersey.
            Segunda-feira pós “Desejo de matar”. Chego da escola com fúria no olhar. Jogo a mochila sobre a cama e coloco meu coldre na cintura. Carrego meus dois revólveres Estrela com duas longas fitas de espoleta Ringo. Almocei armado até os dentes. Comi bife com arroz e feijão, lavei meu prato e escovei os dentes. Fui para a casa da minha madrinha e passei batido pela sala, sem cumprimentar ninguém. No quintal, meu desafeto canino estraçalhava uma cabeça de boneca. Ela sentiu minha presença e imediatamente ficou em pé, rosnando de maneira ameaçadora. Desafiadoramente parei em sua frente, com as pernas muito abertas e as mãos na cintura. Faltava só a trilha sonora de Sergio Leone. Ela correu em minha direção enquanto descarreguei meus dois rolos de espoleta em sua direção. Em meio ao caos de estampidos e fumaça, sorri enquanto a bicha fugia: “Claro, foi se enfiar embaixo da mesa”. Impiedoso, saí em seu percalço. Ninguém entendeu nada quando eu invadi a copa da minha Madrinha gritando “Venha sentir a fúria dos meus canos fumegantes, sua assassina!”.

domingo, 11 de dezembro de 2011

O MACABRO DESTINO DOS MOTOBOYS


A maldade do hediondo Craig Nelson parece não ter limites e quem tem acompanhado os noticiários sabe muito bem que estou falando dos sádicos jogos promovidos pela LU (Loteria Universal). Recentemente, a cruel Organização sorteou os nomes de novecentos motoboys residentes na cidade de São Paulo e proporcionou para os cidadãos daquela cidade um air show de horrores jamais visto.
            Os 900 sorteados foram levados ao Aeroporto Internacional de São Paulo / Guarulhos – Governador André Franco Montoro onde, sem receber nenhuma informação prévia, foram embarcados em dois Boeings 747. Uma vez instalados os malfadados passageiros, a aeronave alçou vôo e ficou sobrevoando em círculos o entorno do Aeroporto. Imprensa falada, escrita, televisada e digital foram convocadas para o evento. Devidamente instalados na cabeceira da pista, os jornalistas presenciaram e transmitiram o abjeto show, que só poderia ser mesmo fruto da mente degenerada de Craig. Durante a segunda volta das aeronaves, eis que surge um jato Dassault Mirage 2000 que, com dois mísseis certeiros, encheu os céus da capital paulista com duas imensas bolas de fogo. Inútil descrever o desespero dos familiares e amigos das vítimas e seu inconformismo com a gratuidade da tragédia.

            Agora, mais cruel mesmo que a LU e suas chacinas aleatórias, só mesmo a realidade. Novecentos é o número de motoboys que morrem anualmente na cidade de São Paulo. Como não são capturadas pelas câmeras de TV e são pulverizadas ao longo de 365 dias, estas mortes não chocam nem provocam inconformismo. Craig Nelson pelo menos deixou intactas as novecentas motocicletas de seus sorteados.

domingo, 4 de dezembro de 2011

O MÉTODO DAN LURIE

Nosso guru, Dan Lurie
          
              Eu estava bem comigo mesmo. Não ligava para minha barriga e tetas avantajadas conquistadas a base de muita bolacha, guaraná quinze, sofá e sessão da tarde. Eu era feliz entre meus falcons, playmobils, forte apaches, a molecada do bairro do sapo e a do colégio. Até que aqueles dois ovinhos localizados na altura da virilha, entre as duas pernas, inventaram de produzir e jogar na minha corrente sanguínea uma tal de testoterona. Aí então tudo mudou.
       Aquelas criaturas irritantes, de voz esganiçada e que choravam por qualquer coisa, de repente passaram a se tornar interessantes. Puxar suas Maria-chiquinhas perdeu a graça. Esconder grilos dentro do estojo delas perdeu a graça. Brincar de “menino pega menina” durante o recreio perdeu a graça. O recreio passou a ser nossa rodinha observando de longe a rodinha delas. Começamos a dar-lhes balas, pirulitos. Mandávamos bilhetes durante as aulas e éramos solenemente ignorados. Não éramos os moleques do colegial nem muito menos os Menudos. Passamos a ser os chatos. Éramos “crianças” demais.
            Em casa, lendo meu “Almanaque da Mônica”, veio a solução. No gibi, como de hábito, estava encartado o catálogo da Ediouro que continha “O método Dan Lurie de modelagem do físico”. No dia seguinte, levei a revistinha na escola e durante o recreio, convenci a molecada. Sabe porque elas não querem saber de nós? Por que nós não temos músculos. Vocês acham que o Rambo ou o Schwarzenegger têm problemas com garotas?
            Fizemos a vaquinha e, quinze dias depois, o método Dan Lurie chegou em casa pelo correio. A molecada ficou enlouquecida. Dan Lurie era o cara. Logo no começo do livro, havia uma foto de Dan tirando uma queda de braço com o então presidente americano Ronald Reagan. Entre as séries de exercícios propostos no livro, havia dicas de como abordar uma garota e de como melhorar a voz treinando com um osso de galinha entre os dentes. O método Dan Lurie era um misto de auto-ajuda com malhação. Empolgados, montamos nosso pequeno grupo de futuros “Mister Universo”. Durou uns quinze dias, até nós percebemos que tantos moleques juntos sem jogar bola era um desperdício. Dan Lurie foi trocado por uma bola Kichute número 5. Felizmente, as meninas caíram em si. Os Menudos estavam longe, lá em Porto Rico, e os caras do colegial nem queriam saber das pirralhas do ginásio. Mais ainda iria demorar um tempo até o gorducho comedor de bolachas se dar bem...