O óbvio ululante |
O grande Nelson Rodrigues (sempre este autor
fatal) tinha por Otto Lara Resende uma destas amizades fundamentais, devotas.
Esta devoção chegava mesmo a incomodar o Otto na medida em que o anjo
pornográfico fazia do amigo um de seus principais personagens em suas crônicas
diárias. E foi numa destas crônicas com seu personagem predileto que Nelson
criou o hoje clássico termo “óbvio ululante”.
Reconto
com palavras minhas. Otto vinha dirigindo por sei lá qual rua do Rio de Janeiro
quando freou bruscamente o carro, desceu, olhou para o Pão de Açúcar e exclamou
“Como é lindo! Como é lindo!”. As pessoas a sua volta não entenderam nada,
afinal de contas o Otto tinha visto zilhões de vezes a tal pedra. Mas segundo
Nélson, o fato é que o Otto tinha conseguido realmente ver o que nem todos conseguiam: a óbvia beleza da pedra
saltando ululante aos olhos.
Mas
eu contei tudo isso porque recentemente tive meu próprio encontro com o óbvio
ululante. Explico. Comia eu meu rotineiro bife com fritas enquanto contava a um
amigo algumas histórias da televisão que havia lido no “Livro do Boni”. O cara
ficou interessado e me pediu o livro emprestado. Disse “Claro, amanhã eu te
trago”, terminamos de comer e nos despedimos. E fui então que tudo aconteceu.
Antes
de voltar ao laboratório, passei no caixa eletrônico para sacar cinquenta paus.
Inseri o cartão e imediatamente a máquina sedutora me apresentou a foto de uma
família feliz e ofereceu dinheiro para “realizar meus sonhos”. Recusei então
aquilo que costumamos chamar de “empréstimo bancário” e refleti: o banco não
nos empresta nada. O banco nos vende o dinheiro.
Mas
então porque dizemos que “emprestamos dinheiro a juro” e não que “compramos
dinheiro a prazo”? Simples. Porque queremos satisfazer nossos sonhos de consumo
mas temos vergonha de dizer que não podemos. O banco, sabedor desta nossa
fraqueza psicológica, age como aquele agiota que passa o dia bebericando café
no Bar Central. Com pose de velho amigo, ele chacoalha as correntes de ouro do
pescoço e nos adianta uns tostões. E nós cumprimos o script e aceitamos a “grana” do nosso velho camarada. Rapidamente
fugi da tela sedutora, peguei meus cinquenta paus e voltei ao laboratório.
Enquanto caminhava, refleti sobre o óbvio ululante. Emprestar significa deixar
o livro com um amigo para poder trocar ideias no próximo filé com fritas. Mesmo
sem os cordões de ouro, a telinha daquela caixa cinza impessoal quer é nos
vender tostões. E caro.