domingo, 13 de maio de 2012

O ÓBVIO ULULANTE CONTRA-ATACA OU SOBRE COMO TEMOS VERGONHA DE COMPRAR DINHEIRO


O óbvio ululante


O grande Nelson Rodrigues (sempre este autor fatal) tinha por Otto Lara Resende uma destas amizades fundamentais, devotas. Esta devoção chegava mesmo a incomodar o Otto na medida em que o anjo pornográfico fazia do amigo um de seus principais personagens em suas crônicas diárias. E foi numa destas crônicas com seu personagem predileto que Nelson criou o hoje clássico termo “óbvio ululante”.
            Reconto com palavras minhas. Otto vinha dirigindo por sei lá qual rua do Rio de Janeiro quando freou bruscamente o carro, desceu, olhou para o Pão de Açúcar e exclamou “Como é lindo! Como é lindo!”. As pessoas a sua volta não entenderam nada, afinal de contas o Otto tinha visto zilhões de vezes a tal pedra. Mas segundo Nélson, o fato é que o Otto tinha conseguido realmente ver o que nem todos conseguiam: a óbvia beleza da pedra saltando ululante aos olhos.
            Mas eu contei tudo isso porque recentemente tive meu próprio encontro com o óbvio ululante. Explico. Comia eu meu rotineiro bife com fritas enquanto contava a um amigo algumas histórias da televisão que havia lido no “Livro do Boni”. O cara ficou interessado e me pediu o livro emprestado. Disse “Claro, amanhã eu te trago”, terminamos de comer e nos despedimos. E fui então que tudo aconteceu.
            Antes de voltar ao laboratório, passei no caixa eletrônico para sacar cinquenta paus. Inseri o cartão e imediatamente a máquina sedutora me apresentou a foto de uma família feliz e ofereceu dinheiro para “realizar meus sonhos”. Recusei então aquilo que costumamos chamar de “empréstimo bancário” e refleti: o banco não nos empresta nada. O banco nos vende o dinheiro.
            Mas então porque dizemos que “emprestamos dinheiro a juro” e não que “compramos dinheiro a prazo”? Simples. Porque queremos satisfazer nossos sonhos de consumo mas temos vergonha de dizer que não podemos. O banco, sabedor desta nossa fraqueza psicológica, age como aquele agiota que passa o dia bebericando café no Bar Central. Com pose de velho amigo, ele chacoalha as correntes de ouro do pescoço e nos adianta uns tostões. E nós cumprimos o script e aceitamos a “grana” do nosso velho camarada. Rapidamente fugi da tela sedutora, peguei meus cinquenta paus e voltei ao laboratório. Enquanto caminhava, refleti sobre o óbvio ululante. Emprestar significa deixar o livro com um amigo para poder trocar ideias no próximo filé com fritas. Mesmo sem os cordões de ouro, a telinha daquela caixa cinza impessoal quer é nos vender tostões. E caro.