domingo, 2 de outubro de 2011

NOTAS TURCAS II OU O CACHORRO PAVLOVIANO DO PADRE CHIQUINHO

Eu e minha muito amada irmã temos uma diferença de seis anos. Não que fossemos como Caim e Abel, mas como acontece em toda família saudável, durante nossa infância e adolescência tínhamos brigas de proporções épicas. Um desentendimento acerca do que ver na TV e resolvíamos a contenda esgrimindo rodinho contra piaçava. Qualquer colher de pau, cinzeiro, saca-rolhas ou porta-retratos virava uma arma de longa distância. Os famigerados tamancos de madeira, moda na época entre as meninas e que faziam um irritante teleque-teleque no caminhar eram particularmente mortíferos. Pior para mim, que vivia descalço. Quando ela “adolesceu” e eu continuei um moleque boboca, ela começou a aplicar técnicas psicológicas de tortura. Exemplo:
- Sabia que você não é filho do papai e da mamãe? Você foi pego na lata do lixo.
- Mãe! Ela falou que eu fui pego na lata do lixo.
- Mentira, meu filho. E você, vê se para de atazanar seu irmão com essas besteiras!
E então minha irmã virava e falava baixinho no meu ouvido:
- Bobo, você acha que ela iria te contar a verdade...
            Entre tantas outras, a melhor era a do cachorro pavloviano. Explico. Se você é jauense ou viveu em Jaú durante a época do padre Chiquinho, há de se lembrar que lá pelas cinco da tarde, o padre tocava trilhas sonoras de filmes de bangue-bangue nos megafones da igreja Matriz para chamar os fiéis à missa diária. Para mim, esses chamados significavam outra coisa: ir para casa e tomar banho. E então, ao som dos assovios de “O dólar furado”, eu corria para casa e entrava esbaforido. Minha irmã ria e falava “Que bonitinho! É só escutar a musiquinha que ele vem rapidinho. Parece o cachorro do Pavlov. Reflexo condicionado puro!”. Minha mãe dava a necessária bronca, mas era inevitável rir. A piada era muito boa. A mim, só restava ficar duplamente irritado. Primeiro porque minha mãe ria e segundo porque eu não entendia nada.
            Istambul, 10 de setembro de 2011. Enquanto caminho pelo antigo hipódromo próximo à praça Sultanahmet, ecoa pelos minaretes da estonteantemente bela Mesquita Azul, o chamado às preces: “Allah Akbar...Allah Akbar...Allah Akbar...Allah Akbar…”. Meus companheiros de viagem logo se emocionam com esse exótico toque de cultura islâmica. Quanto a mim, amaldiçôo minha linda irmã, pois tudo o que sinto é vontade de tomar banho.

Um comentário:

  1. rsr, adorei o papo de sua irmã sobre você ser ou não filho... Mas o pior é quando a 'mãe' diz - para brincar - que você foi deixado na porta por uma velha desdentada... Eu vi isso! O 'desdentada' foi ótimo. E o papo do cachorro pavloviano... adorei!
    Bela crônica do cotidiano.

    Bjs
    tais

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