domingo, 28 de agosto de 2011

FÁBULA DARWINIANA SOBRE BUNDA-MOLISMO



             Esta história é contada em minha família há milhares de gerações. No passado, há mais ou menos um milhão e meio de anos, aquele que viria a ser meu paleo-avô Ug! vivia numa pequena tribo de caçadores-coletores em algum lugar da África subsaariana. O curioso é que a tribo de vovô Ug! era composta por quinze homens e apenas uma mulher: aquela que viria a ser minha paleo-avó Tulah.
            Dada a escassez do gênero feminino, não é difícil imaginar como era a dura a vida dos homens da aldeia. Eles faziam de tudo para conquistar a dengosa Tulah. Traziam lindos casacos de pele de preguiça gigante e belíssimos colares de dentes de sabre. Convidavam-na para belos jantares à base de picanha de mamute e entretinham-na com lutas sangrentas para exibir coragem. Vovó Tulah, exclusiva, apenas suspirava de desinteresse. O exótico vovô Ug! mantinha-se sempre afastado das disputas. Passava grande parte do tempo em sua caverna dormindo, comendo ou desenhando bichos, plantas e cenas de caçadas nas paredes. Ao entardecer, quando a fome batia, ele pegava sua clava e procurava um buraco de tatu. Esperava o bicho sair e dava uma traulitada na cabeça do coitado. Isso garantia mais três ou quatro dias de sossego. Não é difícil imaginar que o perigoso estilo de vida levou à quase extinção da pequena comunidade. Em um ano ou dois, mataram-se ou foram mortos todos os aldeões. Sobraram Ug! e Tulah. Hoje não sabemos se foi por pura falta de opção ou se por amor, mas o fato é que o casal procriou e a maior prova sou eu.
            Milhão e meio de anos depois e às duas da manhã, me pego sentado em minha poltrona perfeita, com um pacote de Doritos no colo, uma caixa de Bis e seiscentos mililitros de coca-cola zero. Enquanto assisto ao exdrúxulo Dr. Rey vender sua claustrofóbica Shapewear, reflito sobre a esperteza de meu paleo-avô. Num mundo de tigres e mamutes, a estratégia de sobrevivência de vovô Ug! foi vencedora. O problema é que ela nunca previu a existência de invisíveis predadores moleculares como o colesterol e os triglicérides. Vovô Ug! que me desculpe, mas é preciso renegar sua herança genética, calçar tênis, bermuda e camiseta e sair da caverna com maior freqüência...

domingo, 21 de agosto de 2011

POMBAS NÃO LIGAM PARA BENS MATERIAIS

Antes, um preâmbulo. Às vezes o universo conspira a nosso favor. Uma combinação de boa educação, trabalho duro e a companhia perfeita me levaram a Paris no último mês de julho. Dias perfeitos com longas caminhadas na cidade mais bonita do mundo. Dentre os destinos na Cidade Luz, o complexo de tênis de Roland Garros, um antigo sonho. Na loja do complexo, busco pelos inevitáveis souvenirs. Acabo comprando, entre outras bugigangas, um belíssimo casaco impermeável azul escuro com um pequeno logo do tradicional templo do tênis. Vou embora feliz da vida. Fim do preâmbulo.
            E então chegamos a esta gelada primeira semana do mês de agosto, mais especificamente a uma quinta-feira que amanheceu siberiana. Após um café fumegante e fundamental, tomo um banho escaldante e vou me vestir. E foi então que tive um surto de arrogância pequeno burguesa: vou usar meu fantástico casaco francês. As pessoas vão achar bonito e perguntar “Nossa! Que casaco bonito! Onde você comprou?” e Eu, soberbo, vou cravar: “Paris”. E foi com esse casaco perfeito e este pensamento ridículo que parti para o trabalho.
            Após o almoço, meu amigo Miller resolveu tomar um sorvetinho. Rejeitei a guloseima gelada num dia tão frio, mas sentei-me ao seu lado no banco da sorveteria, sob as árvores peladas, para fazer companhia e curtir um solzinho gostoso. Enquanto discutíamos bolsas, projetos, artigos científicos e o namoro de Rodrigo Santoro com J-Lo, recebi uma lição de humildade bíblica. Uma pomba muito precisa conseguiu, a uns seis metros de altura, acertar um jato de fezes em meu ombro. Fugi para o banheiro sob uma salva de gargalhadas, para salvar meu casaco e minha dignidade. Em frente ao espelho, esfregando papel higiênico molhado sobre o local atingido, filosofei. Pombas não ligam para bens materiais. Talvez seja por isso que em toda imagem de São Francisco de Assis, o mais humilde dos santos vem sempre acompanhado de dois ou três desses bombardeiros penosos.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

AO MEU PAI, PELO PRIMEIRO ANIVERSÁRIO DE SUA MORTE

Dia doze será uma sexta-feira, motivo pelo qual esperarei o dia seguinte para celebrar o aniversário da sua morte. Vou transformar a manhã de sábado num ritual pagão, onde cada gesto terá um significado superior, litúrgico e sagrado. Tudo será pensado em sua homenagem e todos meus pensamentos estarão contigo.
            Vou acordar às seis horas e buscar pão na padaria Santo Antônio. Oito para ser preciso. Passarei uma generosa camada de manteiga Aviação em um deles, colocarei dezoito gotas de Zerocal na caneca de porcelana que suas netas lhe compraram em Parati e vou preenchê-la com um quarto de leite desnatado bem quente e três quartos com o café que sua mulher há de preparar. A mesma mulher que vai respirar fundo em desaprovação quando eu espanar a mesa com os dedos, jogando as migalhas no chão. Com a caneca na mão, vou abrir o portão da frente e olhar o céu que haverá de estar muito azul. Será inevitável lembrar-me das pombas, que você criava com tanto esmero. E então será inevitável também chorar.
            Vou enxugar o rosto com as costas das mãos e seguir para seu quarto, que agora uso aos fins de semana. Vestirei shorts, camiseta e tênis. Irei ao parque. Correrei em ritmo forçado cinco quilômetros a mais que o habitual. Sentirei o coração e os vasos sanguíneos pulsarem, a respiração forçada e ouvirei meus passos rápidos. Sentirei também o gosto salgado do suor em meus lábios. E então lhe agradecerei em silêncio, pois esta máquina em funcionamento abusado é um projeto inconsciente seu, que começou há quarenta anos.
            Voltarei para a casa da sua mulher e abrirei uma lata de cerveja muito gelada. E então me lembrarei das incontáveis ocasiões mágicas em que compartilhamos o delicioso líquido amarelo em nossos churrascos a dois. Quinhentos gramas de contra-filé, vinte e quatro latinhas, confidências, recordações e planos. Depois, o sono turbulento entremeado por encontros à porta da geladeira, disputando a garrafa de água gelada. Juras nunca cumpridas de nunca mais fazer aquilo.
            E então, vou acordar sua neta. E, enquanto ela escovar os dentes, vou segurá-la pelos ombros, beijá-la na testa e fitar longamente seus olhos azuis. Os seus olhos azuis. E então vou chorar uma última vez, dobrar minha dor e guardá-la numa velha caixa de charutos, junto outras lembranças doces e sofridas e trancar a sete chaves em meu córtex cerebral. Tomarei um banho purificador para lavar o sal das lágrimas e da transpiração. Encerrarei o culto matinal perguntando para sua mulher o que teremos para o almoço.

domingo, 7 de agosto de 2011

CARIDADE ETÍLICA

Naquela época eu já acordava muito cedo e tinha um Del Rey 1984 cinza, duas portas, série prata a álcool. Numa segunda de manhã - como em todas as outras, impacientemente eu dei a partida, puxei o afogador e esperei o motor do bólido esquentar. Aproveitei este intermezzo para tomar uma caneca de café junto ao portão já escancarado da garagem. Enquanto sorvia o aroma da droga líquida, negra e fundamental, eu cumprimentei os vizinhos. Foi então que ele apareceu pela primeira vez. Como qualquer profissional, os anos na mendicância lhe apuraram a técnica. Timming perfeito na abordagem e expressão convincente de necessitado. Irresistível não colaborar.
            Claro que a ruína alcoólica ajudava e muito a despertar a piedade. Olhos amarelos, sonolentos, barriga inchada num corpo muito magro. Apesar do frio, calçava chinelos apertados para os pés enormes, como pães Pullman. Num fetichismo mórbido, verifiquei que as poucas unhas que sobraram descolavam dos dedos. Um boné da Caixa Econômica Federal achatadíssimo pendia sobre a cabeleira indômita e imunda. Igualmente imundas eram a bermuda muito larga e a camiseta Hang loose. Se não fosse a cana, a imundície e a ruína física, passaria muito bem por surfista. E foi exatamente enquanto eu ria deste pensamento descabido que ele disparou, abusando dos diminutivos e tremendo muito:
- Bom dia, Doutor. Será que o senhor não teria um cruzadinho para eu tomar um cafezinho e comer um pãozinho?
Hesitei uns três segundos. Disse:
-Peraí.
            Antigamente, o requeijão cremoso vinha em copos de vidro que, uma vez consumido o conteúdo, eram bem lavados e usados para tomar água, refrigerante e etc. Adoro requeijão, portanto tinha muitos destes copos. Enchi um deles com duzentos e cinqüenta mililitros de uma cachaça que comprara num alambique em Lençois Paulista e que mantinha num corote de carvalho. Coisa fina. Levei para o pobre diabo. Sofregamente ele tomou metade do conteúdo. O resto ele foi sorvendo vagarosamente, no mesmo ritmo e com a mesma expressão de prazer que eu bebia meu café. Quando terminou, me devolveu o copo, agradeceu e subiu a rua:
- Deus te abençoe. Bom dia pro senhor.
            O mesmo ritual repetiu-se sem nenhuma mudança na terça e na quarta. Na quinta, o corote já estava vazio. Enchi o copo com uma cachaça que estava no garrafão e ainda não tinha passado pelo processo de envelhecimento no tonelzinho de carvalho e levei para o meu amigo. Foi então que reparei uma mudança no ritual. Após tomar sua dose, devolveu o copo e não me deu a bênção e o bom dia habituais. Apenas acenou com a cabeça e partiu.
            Na sexta, não apareceu. Fiquei na porta, com meu café e o barulho do motor esperando meu amigo cachaceiro. Enchi-me de culpa: onde já se viu dar pinga para um alcoólatra? Minhas doses matinais acabaram de arruinar o homem. Sumiu porque morreu. Seu Matias, antigo funcionário da prefeitura, varria a rua e perguntou:
-Seu amigo não veio hoje?
-Não, Seu Matias. Acho que matei o homem de tanto dar cangibrina para ele.
            O velho parou seu trabalho, colocou a grande vassoura de bambu na vertical e apoiou o queixo. Coçou a cabeça por baixo do grande chapéu de palha e disse:
-Pois eu acho é que ele não gostou da branquinha...