domingo, 7 de agosto de 2011

CARIDADE ETÍLICA

Naquela época eu já acordava muito cedo e tinha um Del Rey 1984 cinza, duas portas, série prata a álcool. Numa segunda de manhã - como em todas as outras, impacientemente eu dei a partida, puxei o afogador e esperei o motor do bólido esquentar. Aproveitei este intermezzo para tomar uma caneca de café junto ao portão já escancarado da garagem. Enquanto sorvia o aroma da droga líquida, negra e fundamental, eu cumprimentei os vizinhos. Foi então que ele apareceu pela primeira vez. Como qualquer profissional, os anos na mendicância lhe apuraram a técnica. Timming perfeito na abordagem e expressão convincente de necessitado. Irresistível não colaborar.
            Claro que a ruína alcoólica ajudava e muito a despertar a piedade. Olhos amarelos, sonolentos, barriga inchada num corpo muito magro. Apesar do frio, calçava chinelos apertados para os pés enormes, como pães Pullman. Num fetichismo mórbido, verifiquei que as poucas unhas que sobraram descolavam dos dedos. Um boné da Caixa Econômica Federal achatadíssimo pendia sobre a cabeleira indômita e imunda. Igualmente imundas eram a bermuda muito larga e a camiseta Hang loose. Se não fosse a cana, a imundície e a ruína física, passaria muito bem por surfista. E foi exatamente enquanto eu ria deste pensamento descabido que ele disparou, abusando dos diminutivos e tremendo muito:
- Bom dia, Doutor. Será que o senhor não teria um cruzadinho para eu tomar um cafezinho e comer um pãozinho?
Hesitei uns três segundos. Disse:
-Peraí.
            Antigamente, o requeijão cremoso vinha em copos de vidro que, uma vez consumido o conteúdo, eram bem lavados e usados para tomar água, refrigerante e etc. Adoro requeijão, portanto tinha muitos destes copos. Enchi um deles com duzentos e cinqüenta mililitros de uma cachaça que comprara num alambique em Lençois Paulista e que mantinha num corote de carvalho. Coisa fina. Levei para o pobre diabo. Sofregamente ele tomou metade do conteúdo. O resto ele foi sorvendo vagarosamente, no mesmo ritmo e com a mesma expressão de prazer que eu bebia meu café. Quando terminou, me devolveu o copo, agradeceu e subiu a rua:
- Deus te abençoe. Bom dia pro senhor.
            O mesmo ritual repetiu-se sem nenhuma mudança na terça e na quarta. Na quinta, o corote já estava vazio. Enchi o copo com uma cachaça que estava no garrafão e ainda não tinha passado pelo processo de envelhecimento no tonelzinho de carvalho e levei para o meu amigo. Foi então que reparei uma mudança no ritual. Após tomar sua dose, devolveu o copo e não me deu a bênção e o bom dia habituais. Apenas acenou com a cabeça e partiu.
            Na sexta, não apareceu. Fiquei na porta, com meu café e o barulho do motor esperando meu amigo cachaceiro. Enchi-me de culpa: onde já se viu dar pinga para um alcoólatra? Minhas doses matinais acabaram de arruinar o homem. Sumiu porque morreu. Seu Matias, antigo funcionário da prefeitura, varria a rua e perguntou:
-Seu amigo não veio hoje?
-Não, Seu Matias. Acho que matei o homem de tanto dar cangibrina para ele.
            O velho parou seu trabalho, colocou a grande vassoura de bambu na vertical e apoiou o queixo. Coçou a cabeça por baixo do grande chapéu de palha e disse:
-Pois eu acho é que ele não gostou da branquinha...

3 comentários:

  1. Pensas que chachaceiro não tem controle de qualidade? São anos de treino.

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  2. O pior é que a branquinha era boa também...

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  3. devia ser são paulino o pobre diabo!

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