domingo, 10 de julho de 2011

A SEGUNDA-FEIRA DE SEU DOMINGOS

Acordou sem a ajuda do despertador. Era a primeira vez em incontáveis anos que uma segunda-feira começava sem o alarme estridente do rádio relógio. Ainda deitado, sorriu para o teto com a idéia de que ele e o escandaloso aparelho aposentavam-se no mesmo dia. Virou-se de lado e assumiu uma posição fetal abraçando-se ao antigo travesseiro da esposa. Deste ângulo o lugar vago da companheira parecia uma vasta planície. Depois da linha do horizonte, vislumbrou o porta-retratos com as fotos dos filhos distantes. Percebeu que, se ficasse mais dois segundos nesta posição, começaria a sentir pena de si mesmo. Voltou a ficar de costas no colchão e, num único impulso, girou os pés para fora da cama e ficou sentado. Calçou os chinelos de borracha novos em folha: um auto-presente para comemorar a nova fase da vida. Não eram as Havaianas a que estava acostumado, mas eram bem parecidas e mais baratas. Agora precisava adequar o orçamento à minguada aposentadoria.
            Como havia dormido de bermudas, levantou-se e vestiu apenas a camisa. Abotoou-a só até a altura do umbigo e colocou no bolso o cartão de beneficiário do INSS juntamente com as contas de água e de luz. Nos bolsos da bermuda pôs o pente Flamengo e um lenço. Passou um cafezinho sem-vergonha para ajudar a engolir três bolachas cream cracker. Cozinhou al dente meio pacote de macarrão chumbinho, misturou com meio pacote de fubá mimoso e guardou tudo num velho pote de margarina vazio – era a melhor isca para lambaris que conhecia. Colocou alpiste e trocou a água dos pássaros. Foi ao quartinho e pegou a varinha de bambu e uma pequena bolsa com as tralhas de pescaria. Antes de sair, pôs seu velho boné da Caixa Econômica Federal. Apesar da chuva do dia anterior, o dia amanhecera aberto e sol já estava implacável às nove horas da manhã.
            Passou na lotérica, recebeu o benefício, fez uma fezinha na Loto fácil e pagou água e luz. Cruzou com amigos da prefeitura que gracejaram com ele “Cadê o uniforme, Seu Domingos?”. “Pode fazer o maior frio do mundo que eu nunca mais uso botas nem calças”, respondeu. Não levava lanche porque pretendia almoçar em casa. A barranca do rio ficava a apenas cinco quilômetros de distância, por isso foi a pé. Ao chegar, foi descendo devagar a encosta úmida e escorregadia, mas as tiras do chinelo não resistiram e soltaram-se da sola. Escorregou, caiu na água e afundou. Foi encontrado flutuando dois dias depois e quatrocentos metros rio abaixo. Foi reconhecido pelo cartão de beneficiário do INSS que ainda estava no bolso da camisa. As contas de água e luz provavelmente desmancharam-se na água. Sobre o pente e o lenço nada se sabe, pois o rádio nada divulgou sobre o conteúdo dos bolsos da bermuda.
            A triste história de Seu Domingos não mereceria a pena ser contada não fossem as três incríveis ironias relacionadas a ela, a saber:
- Primeira ironia: um homem morreu em seu primeiro dia como aposentado.
- Segunda ironia: “Seu Domingos” morreu numa “segunda”.
- Terceira ironia: se Seu Domingos tivesse comprado Havaianas, que todos sabemos não soltar as tiras, ele não teria morrido.
            Mais o mais incrível mesmo não são as ironias tristes. Incrível é uma pessoa ter a cara de pau de achar que é Albert Camus e publicar uma história dessas...

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