domingo, 13 de maio de 2012

O ÓBVIO ULULANTE CONTRA-ATACA OU SOBRE COMO TEMOS VERGONHA DE COMPRAR DINHEIRO


O óbvio ululante


O grande Nelson Rodrigues (sempre este autor fatal) tinha por Otto Lara Resende uma destas amizades fundamentais, devotas. Esta devoção chegava mesmo a incomodar o Otto na medida em que o anjo pornográfico fazia do amigo um de seus principais personagens em suas crônicas diárias. E foi numa destas crônicas com seu personagem predileto que Nelson criou o hoje clássico termo “óbvio ululante”.
            Reconto com palavras minhas. Otto vinha dirigindo por sei lá qual rua do Rio de Janeiro quando freou bruscamente o carro, desceu, olhou para o Pão de Açúcar e exclamou “Como é lindo! Como é lindo!”. As pessoas a sua volta não entenderam nada, afinal de contas o Otto tinha visto zilhões de vezes a tal pedra. Mas segundo Nélson, o fato é que o Otto tinha conseguido realmente ver o que nem todos conseguiam: a óbvia beleza da pedra saltando ululante aos olhos.
            Mas eu contei tudo isso porque recentemente tive meu próprio encontro com o óbvio ululante. Explico. Comia eu meu rotineiro bife com fritas enquanto contava a um amigo algumas histórias da televisão que havia lido no “Livro do Boni”. O cara ficou interessado e me pediu o livro emprestado. Disse “Claro, amanhã eu te trago”, terminamos de comer e nos despedimos. E fui então que tudo aconteceu.
            Antes de voltar ao laboratório, passei no caixa eletrônico para sacar cinquenta paus. Inseri o cartão e imediatamente a máquina sedutora me apresentou a foto de uma família feliz e ofereceu dinheiro para “realizar meus sonhos”. Recusei então aquilo que costumamos chamar de “empréstimo bancário” e refleti: o banco não nos empresta nada. O banco nos vende o dinheiro.
            Mas então porque dizemos que “emprestamos dinheiro a juro” e não que “compramos dinheiro a prazo”? Simples. Porque queremos satisfazer nossos sonhos de consumo mas temos vergonha de dizer que não podemos. O banco, sabedor desta nossa fraqueza psicológica, age como aquele agiota que passa o dia bebericando café no Bar Central. Com pose de velho amigo, ele chacoalha as correntes de ouro do pescoço e nos adianta uns tostões. E nós cumprimos o script e aceitamos a “grana” do nosso velho camarada. Rapidamente fugi da tela sedutora, peguei meus cinquenta paus e voltei ao laboratório. Enquanto caminhava, refleti sobre o óbvio ululante. Emprestar significa deixar o livro com um amigo para poder trocar ideias no próximo filé com fritas. Mesmo sem os cordões de ouro, a telinha daquela caixa cinza impessoal quer é nos vender tostões. E caro.

sábado, 21 de abril de 2012

ANENCÉFALOS

Favor usar sem moderação

Acabo de voltar do banheiro e, pelo que pude constatar, não pertenço ao gênero que dá a luz. Assim, antes que alguém deseje desqualificar minha opinião sobre a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos, gostaria de lembrar que nove dos onze ministros do supremo também são homens. Portanto, mesmo que me falte a toga, lá vai meu pitaco.
            “Pedaço de mim” é talvez a letra de música mais triste composta em Língua Portuguesa. É tão triste que, se não fosse tão bonita, não valeria a pena ser ouvida. Nela, o soberbo Chico decreta:
“Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu”
            Mais triste que a música, só mesmo a realidade. Imagine inflar o ventre e produzir o leite do filho que vai morrer. Imagine ver os contornos e escutar o “wuá-wuá” cardíaco no ultrassom e saber que aquela criatura não há de vingar. Que fazer? O mínimo. Que a mãe escolha a hora e lugar do revés do parto. Que a mãe arrume o quarto do filho que já morreu na hora em que bem entender.

domingo, 8 de abril de 2012

SEU ROQUE TAMANINI E AS RAÍZES DO BRASIL

Seu Roque me fez lembrar deste livro fundamental...

Cobertos de fuligem e suor, nossos irmãos do norte forjaram a modernidade à base de carvão, aço e vapor. Enquanto isso, abaixo do equador, insistíamos em adoçar o mundo  a base de cana e músculos africanos. No norte, homens como Benjamin Franklin, James Watt e Lavoisier tomavam choques, faziam fumaça e fediam a enxofre para fundar as facilidades do mundo moderno. Por aqui, papai descia o relho em "seus pretos" enquanto o filhinho vestia gravata de cetim e ia para as universidades da metrópole bebericar vinho do porto e tecer a labiríntica burocracia do estado-mamute que nos atola até hoje.
            O célebre historiador Sérgio Buarque de Holanda, pai do não menos célebre Chico, já denunciava este bunda-molismo, esse “nojinho” de fazer coisas com a mão. Para ele, o brasileiro sempre achou inferior o trabalho mecânico. Bonito mesmo é papel. No seminal “Raízes do Brasil”, o grande Holanda chamou esta lamentável faceta da cultura brazuca de “bacharelismo”.
            Mas você há de perguntar: porque tamanha fúria sociológica? E mais. O que isso tem a ver com o Professor Roque? Explico, explico. Fiquei chateado quando soube, com certo atraso, que Seu Roque Tamanini morreu. Seu Roque foi meu professor de desenho técnico, marcenaria e trabalhos manuais. Seu Roque me ensinou a desenhar um parafuso em projeção ortogonal. Seu Roque me ensinou a instalar dois interruptores e uma lâmpada em paralelo. Ensinou a fazer um cabo de rodinho a partir de um toco de pinus. Enfim, ensinou tudo isso e muito mais. Hoje pouco lembro dos diagramas elétricos e nem sei se um parafuso se aperta girando para a esquerda ou para a direita. Não interessa, não interessa. O fato é que eu e muitos outros ex-moleques somos menos bunda-moles por causa do Seu Roque.

domingo, 1 de abril de 2012

HARRISON FORD, MELANIE GRIFFITH E A MAIOR FELICIDADE DO MUNDO


Um filme divertido num dia muito, muito feliz

A enfermeira soltou um único pedaço de fita crepe que mantinha o pequeno pacote coeso e abriu o lençol. Neste momento, o sangue faltou às minhas pernas e apoiei a testa no vidro. Foi então que, através das lágrimas e do hálito condensado, eu vi você pela primeira vez. Como alguém que faz uma longa viagem e fica muito tempo na mesma posição, vi você alongar braços e pernas enquanto o peito subia e descia para encher os pulmões com aquela novidade chamada ar. Seu urro da vida fazia o curativo do umbigo balançar. Como Jacques Cousteau, fiz um OK interrogativo para a enfermeira, que me respondeu sorridente com um OK tranqüilizante enquanto fechava a cortina. Fim do primeiro ato.
            E então, antes do amor, veio o pânico. Tem cérebro? Será que respira? Será que escuta? Será que enxerga? O coração bate direito? O intestino funciona? Tem dez dedos nas mãos? E nos pés? Porque um curativo tão grande no umbigo? Em casa, o pânico persiste. Mamou direito? Arrotou? Mijou? Cagou? Está limpa? Tem calor? Tem frio? Quer dormir? Quer acordar? Porque chora? Tem cólica? Visitas, por favor, Olhem de longe e nem pensem em pegar no colo. É bom nem entrar no quarto. Confesso, confesso. Foram cinco meses de pânico. Cinco meses sem amor. E foi então que tudo mudou.
            Era um daqueles feriadinhos providenciais de quarta-feira, sem emenda com o fim de semana. Deitei-me no tapete da sala e tirei a almofada do sofá para apoiar a cabeça. Na sessão da tarde, passava o divertido “Uma secretária de futuro”, com a ex-bela Melanie Griffith e o eterno Indiana Jones. Acomodei você sobre meu peito, de bruços. E então, enquanto Sigourney Weaver quebrava o pé, caímos no sono. Uns trinta, quarenta minutos depois, despertei assustado com o plim-plim que anunciava o fim do intervalo comercial. Suas mãos pressionaram levemente meu peito enquanto você levantou vacilante o cabeção para me fitar com seus imensos e narcotizados olhos azuis. Babando profusamente na minha velha camiseta “Farma USP Ribeirão”, você abriu um adorável sorriso banguela e, exausta do esforço, desabou novamente num sono profundo.
            Com cuidado, levantei-me do chão sem que você acordasse. Fui ao quarto e pus você no berço. Sorri ao ver a marca da dobra da minha camiseta impressa na sua bochecha branquinha e voltei para a sala. Harrison Ford cravava um beijo apaixonado em Melanie enquanto eu pensava: pode alguém ser mais feliz que eu? E foi assim, minha filha, que eu nasci para você.

domingo, 25 de março de 2012

NOTEBOOKS E A VELHA OLIVETTI LETTERA 82 PORTÁTIL

Hemingway na foto que tanto me impressionou


Todos carregamos na alma um panteão de heróis, mortos ou vivos, que vamos acumulando ao longo da existência. Políticos, atores de cinema, esportistas, ídolos do rock, escritores...enfim. Se alguma pessoa deixou alguma marca no nosso modo de ser ou de pensar, costumamos reverenciá-la. Mas o fato é que agora eu não vou reverenciar ninguém. Vou reverenciar uma coisa, um objeto. Afinal de contas, coisas também podem causar impressões profundas.
            Meu primeiro contato com a máquina de escrever foi auditivo. Em plena fase de alfabetização, eu demorava uns minutos para escrever “Eu vejo a barriga do bebê”, os mesmos minutos que minha tia levava para metralhar uma lauda na velha Olivetti Lettera 82 portátil. Na escrivaninha onde fazia a lição, eu mordia a língua para desenhar as primeiras letras cursivas enquanto escutava o rá-tatatá que a máquina fazia aos comandos dos indicadores roídos da irmã caçula da minha mãe. E, para minha suprema humilhação, tudo que meu caderno exibia eram toscas garatujas borradas de grafite, enquanto a máquina cuspia páginas e páginas em límpidas letras de forma.
            Anos depois eu vi, não sei se foi numa enciclopédia Barsa ou num exemplar de Seleções, uma foto de um de meus heróis literários com o admirável dispositivo mecânico. Na foto em preto e branco, Ernest Hemingway estava sentado à mesa num lugar descampado e sob um céu carregado de nuvens. Ele não via as nuvens nem as montanhas ao longe. Na verdade, ele apertava os olhos para ver o papel enrolado no cilindro da máquina e, diferentemente da minha tia, apoiava as mãos na mesa para dedilhar eficientemente usando todos os dez dedos. E assim, gosto de acreditar, ele datilografou as mais belas combinações de palavra que alguém jamais escrevera antes.

            Fascinado com a imagem despojada e viril do autor de “O velho e o mar”, me matriculei na “Escola de datilografia Visconde de Cairu” e, se hoje digitei este textículo (neologismo para textinho ridículo) usando todos os dez dedos sobre meu Dell Inspiron i14440-651 de quatorze polegadas, foi graças ao velho Ernest. Minha tia, coitada, se foi antes de poder castigar o macio teclado de meu notebook com seus violentos indicadores.

domingo, 18 de março de 2012

UM DESTINO GARRÍNCHICO PARA O IMPERADOR ADRIANO?

Pacaembu, onde meu pai presenciou o fim

Havia entre eu e meu venerando pai o abismo de uma geração. Apesar do amor incondicional, divergíamos em quase tudo: política, segurança pública, artes e etc. Mas, como diria o presidente FHC, em algumas “issues”, concordávamos alegremente. Compartilhávamos o gosto pelo delicioso fermentado amarelo e espumante. Compartilhávamos também a paixão clubística pelo “Sport Club Corinthians Paulista”. E não raramente botávamos nossas afinidades em prática.
            A título de evitar a censura dos familiares, criamos um ritual para podermos beber a apreciada cerveja digamos, de maneira levemente exagerada. Eram nossos churrascos a dois. Nestas ocasiões, acendíamos a pequena churrasqueira feita de roda de caminhão, espetávamos um grilo num alfinete e fatiávamos uma bisnaguinha seven boys para acompanhar. Tiritando de frio, trinta latas de Skol obedientemente esperavam no freezer. Espocando uma após a outra, o grilo esturricava no fogo enquanto a cabeça ia ficando confusa e a língua, fácil. Cada vez menos Veneziani e cada vez mais Karamazov, falávamos cada vez mais alto e com gestos cada vez mais teatrais. E foi num destes momentos dostoievskianos que ele me contou seu episódio com Garrincha.
            No tempo em que ainda se trabalhava de terno e gravata, meu pai afrouxou a sua para assistir a estréia de Mané no Corinthians, contra o Vasco. Os anos de etanol e cortisona já haviam feito seu estrago e o craque já não era nem sombra do bi-campeão mundial que havia brilhado no Chile. Meu pai contou que deixou o belíssimo estádio do Pacaembu aborrecido pelo resultado: três a zero para o time de São Januário. Mas confessou que, no estacionamento do estádio, sentou-se ao volante da perua rural Willys, acendeu um Hollywood e chorou. Chorou não pelo resultado, mas por Garrincha. Chorou pela forma como seus então dribles desconcertantes eram agora desarmados pelos bocejantes zagueiros vascaínos. Chorou pelo fim.
            Quarenta e tantos anos depois, não temos nem mais Garrincha nem meu pai. E o Corinthians agora já não tem também o imperador Adriano. A bem da verdade, Adriano não tem o currículo e acho que nem tem a mesma paixão destruidora pelo etanol que o ingênuo Mané. Mas, não podemos negar, sua passagem foi igualmente decepcionante. Hoje, os venenos são outros, são outros. Espero que, de volta ao Rio de Janeiro, o roliço atacante encontre razões mais profundas para viver, razões que transcendam a fortuna, as mulheres fáceis e as churrascarias. De Adriano no glorioso Timão, só posso dizer que não deu nem para chorar ao volante...

domingo, 11 de março de 2012

SOBRE OOMPA LOOMPAS E SOBRE COMO FUI TROCAR MEU CELULAR NUM DIA PSICODÉLICO

Oompa Loompas, minha nova equipe de limpeza doméstica

Foi uma sexta-feira muito, muito estranha. Começou com uma escolha infeliz, uma verdadeira idéia de jerico. Explico. Levantei-me com o pé esquerdo, meio entediado lá pelas sete da manhã e segui para o banheiro, lugar onde fiz a tal escolha asinina. Olho-me no espelho, dou uns tapinhas no rosto para acabar de acordar, enxáguo a boca, toco pasta na escova e começo a necessária faxina dental. Foi quando escutei o estranho som:
- Râbou!
            Giro o pescoço em busca da origem do barulho esquisito.
-Râbou! Râbou!
            Achei. Sobre o mármore da pia, entre o tubo de creme de barbear e o tênis pé Baruel, eu vi. Um sapo enorme, inflado, todo verruguento e colorido. Roxo e verde-limão, para ser mais preciso. Entre intrigado e divertido, cuspo a espuma branca e faço a grande besteira. Pego o bicho pelo dorso e tasco-lhe uma grande lambida na barriga. Ele riu. Tem cócegas. Arrependido, tento lavar a boca. Já é tarde. A doideira começou.
            Na minha cabeça, Jim Morrison começa a cantar “Strange days”. O corredor que leva à sala de jantar parece um grande túnel colorido e giratório, com flores de todas as espécies e cores flutuando. Na cozinha, liderados pela minha faxineira, Oompa Loompas fazem uma limpeza furiosa. Sorridente como sempre, ela me estende uma caneca de café e diz:
- Bom dia, seu Rodrigo! Gostou da minha equipe de limpeza?
            Confuso, tomei a caneca em minhas mãos e respondi:
- A-rã.
            Ela disparou a falar:
- Foi bom encontrar o senhor. É o seguinte. Os tempos mudaram, o senhor bem sabe. Foi-se a época em que, para comprar alguma coisa era só perguntar “Quanto custa?”. Hoje, as relações de consumo são mais complexas, os produtos são mais diversificados. Eu, enquanto profissional autônoma, não posso ficar parada. Pensando nisto, e na sua comodidade, resolvi criar algumas opções de “planos de faxina” e gostaria de discutir com o senhor qual deles seria o mais adequado para seu perfil.
            E lascou uma rajada de perguntas infames:
- Quantas cuecas limpas o senhor precisa por mês? E camisetas? E calças? Quantos metros quadrados de piso o senhor quer que eu encere por mês?
            Sorvi um longo gole do líquido negro e fundamental. Respirei fundo, mas quando ia abrir a boca, ela me cortou:
- Conhecendo o senhor há mais de quinze anos, tracei um perfil de suas necessidades domésticas e gostaria de lhe propor o plano “Apartment Clean Plus - ACP”, que inclui quarenta cuecas e passadas e um igual número de camisetas e calças, além de seiscentos metros quadrados de piso encerado / mês. Sugiro ainda contratar o pacote “Bathroom wash”, já que a limpeza de vasos sanitários e boxes não estão inclusas no ACP.
            Mais confuso ainda, só consegui perguntar:
- Mas e se eu tiver uma diarréia durante o mês e precisar de mais cuecas?
- Bom, cobramos dois reais por cueca limpa adicional.
            Àquela altura, já desconfiava que aquela conversa surreal era coisa da minha cabeça e tinha a ver com a lambida na barriga do sapo. Ri muito e percebi que não poderia sair de casa naquele estado. Já às gargalhadas, ainda tive forças para dizer à minha funcionária:
- Bom, vou pensar um pouco e amanhã lhe dou um retorno. Agora vou voltar para a cama porque não estou me sentindo muito bem.
            Dormi vinte e quatro horas seguidas. Acordei no sábado, sem alucinações. Aliviado, fui tirar o atraso das providências pendentes da sexta-feira perdida. Primeira tarefa, trocar o celular. No shopping, fui até a loja da operadora. Uma morena franzina e de cabelos curtos, parecendo uma personagem de mangá, me atende. “Taila”, diz seu crachá. Muito sorridente, Taila me diz que meu plano é muito desatualizado, que seria interessante fazer uma “migração”, e pergunta:
- Quantos minutos em chamadas interurbanas o senhor pretende fazer por mês?
            No mesmo tom, retruco com outra pergunta:
- Quanto tempo o veneno de sapo fica na corrente sanguínea?

domingo, 4 de março de 2012

PISTORIUS OU O ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

O genial Pistorius em ação

Já dizia o fundamental Nelson Rodrigues que “o que dá ao homem um mínimo de unidade interior é a soma de suas obsessões”. Nada mais verdadeiro, nada mais verdadeiro. Eu, na realidade, acho que minhas obsessões são uma virtude. Dito isso então, vamos a uma delas: o corredor. Já disse em algum momento e em algum lugar por aqui que, no dia em que dois macacos disputaram uma corrida, foi inventado o ser humano. E é sobre uma destas extraordinárias figuras que eu quero falar hoje. Oscar Pistorius.
            O sul-africano Pistorius é amputado em ambas as pernas abaixo do tornozelo e especialista em 400 metros. Utilizando duas próteses que mais se parecem com uma suspensão de veículos off road, ele domina a categoria em competições paraolímpicas, sendo detentor do recorde mundial dos 100, 200 e 400 metros. Porém, como se não bastasse, Oscar é conhecido por sua luta para participar de competições convencionais. Incrivelmente, depois de muita polêmica, conseguiu sua chance. Participou do mundial de atletismo de 2011 em Daegu (Coréia do Sul) e foi medalhista de prata no revezamento 4X400 e semifinalista nos 400. Mas a polêmica segue. Será que as “molas” de Pistorius lhe proporcionam maior impulsão? Impossível saber, afinal de contas, precisaríamos de um Oscar com pés para responder a esta questão.
            Particularmente, para o bem do esporte paraolímpico, eu não gostaria de vê-lo disputar competições convencionais. O que eu gostaria mesmo era de viver o suficiente para assistir ao triunfo do engenho humano e da superação: um atleta amputado tornar-se o homem mais veloz do mundo, sendo mais rápido que um atleta "normal". Velhinho em minha poltrona, gritaria para meus netinhos a famosa frase que Aldous Huxley emprestou do bardo de Stratford-upon-Avon:
- Ó admirável mundo novo, que encerra criaturas tais!

domingo, 26 de fevereiro de 2012

PERTO DE JUSTUS SOU COMO SÃO FRANCISCO DE ASSIS

Justus no sambódromo paulistano

E eis que passou outro carnaval e como acontece todo santo ano, os brasileiros se dividiram entre aqueles que adoram as folias de momo e aqueles que detestam. Longe de mim ser ou parecer hipócrita, mas o fato é que até vinte anos atrás eu me incluía no primeiro grupo, hoje porém, me identifico mais com o seguinte. E antes que eu seja acusado de vira-casaquismo, explico.
            Até meus vinte, vinte e um anos, eu sempre adorei o carnaval. Não que tivesse algum interesse pelo aspecto cultural da coisa. Bonecos de Olinda, Marquês de Sapucaí, marchinhas e sambas não me despertavam interesse algum. O que eu gostava mesmo é que, durante quatro dias, eu podia liberar os mais baixos instintos e cair numa farra dionisíaca. Se a trilha sonora do nosso carnaval fosse, digamos, as valsas vienenses, não faria a menor diferença. Lá estaria eu, canalha, com um copo de uísque na mão sussurrando ao pé do ouvido das mocinhas:
-Queres ir lá for ver quão azul é o Danúbio?
            Mas, como já disse, isso tudo mudou. Com a pessoa certa ao meu lado e com o fígado reclamando até de uma inocente cervejinha, participar do carnaval me parece despropositado. Assim, me bandeei para o lado dos não-foliões e passei quatro dias curtindo família, filmes, livros e dando um adianto no trabalho. Só esbarrei com o inevitável skindô-skindô durante os noticiários. No meio de tanto tamborim, lantejoulas e euforia, um fato me chamou a atenção: Roberto Justus foi homenageado pela escola de samba paulistana Rosas de Ouro. Mais uma vez, explico.

            Dentre meus defeitos, eu sempre incluí um certo excesso de vaidade. Alguns centímetros a mais de circunferência na cintura me causam verdadeiro pavor. Acompanho com apreensão minha testa avançar sobre o couro cabeludo enquanto retiro à pinça alguns pelos esquisitos que insistem em crescer nas orelhas. Mas durante este último carnaval vi que, comparado a Roberto Justus, eu não passo de um Gandhi, Madre Teresa de Calcutá ou melhor: São Francisco de Assis. Vestido de membro da realeza, o grande publicitário e genro da “Garota de Ipanema” pagou não sei quanto ou fez sei lá qual favor para ser homenageado no sambódromo paulistano. Depois dessa, meus caros, vou vestir minhas alpercatas, amarrar um cinto de corda à cintura e dar de comer aos meus amigos pombos, coelhos e carneirinhos.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

EM DEFESA DE PEDRO BIAL OU O NOVO PACTO MEFISTOTÉLICO

Bial à época da queda do muro

De tempos em tempos somos acometidos de uma fúria intelectualóide. Isso já aconteceu várias vezes antes, mas agora as tais redes sociais fazem este fenômeno se propagar mais rapidamente e atingir maiores proporções. De um momento para outro, começamos a achar que “o nível está baixo” e colocamos a culpa na telinha luminosa. Esquecemo-nos que a boa e velha TV nada mais é que uma vitrine para nos empurrar cartões de crédito, margarina e fatiadores supersônicos de pepino. A novela, o futebol e os programas em geral são iscas para nos manter sintonizados.
            Verdadeiros paladinos da bagagem cultural de nossos filhos, elegemos o Judas da vez: Pedro Bial. Se como eu você estiver batendo às portas da quarta década de vida, há de se lembrar do charmoso repórter Bial vestindo um jaquetão marrom com ombreiras enormes e gola levantada anunciando, bem no meio do “vuco-vuco”, a histórica queda do muro de Berlim. Hoje, você liga a TV às dez da noite e torce o nariz quando vê Pedro lhe convidar para embarcar na “nave mãe do BBB” e dar uma “espiadinha em nossos heróis”. Esquecendo-se que o cara é amante de Guimarães Rosa, poeta, escritor, diretor de filmes e documentários, além de jornalista e biógrafo, você sacode a cabeça decepcionado e diz para si mesmo:
-É, Bial. Quem te viu quem te vê...
            Portanto, se você é destes cavaleiros da alta cultura, eu proponho o seguinte exercício ético. Imagine que o mefistotélico Craig Nelson, CEO da Loteria Universal, aparece na sua casa e toca a campainha. Você o convida para entrar e passa um cafezinho para ele. Muito educado, ele sorve um gole do maravilhoso líquido, agradece e, tirando do bolso uma pequena tanga tipo fio dental revestida de lantejoulas verdes muito brilhantes, lhe faz a proposta:
- Vou direto ao assunto. Vim aqui lhe propor um trabalho. É simples. Está vendo esta tanga? Tudo que você tem a fazer é vesti-la e, na terça-feira gorda às quatro da tarde, desfilar sozinho e rebolando na rua Major Prado, da Igreja de São Sebastião até a Matriz Nossa Senhora de Aparecida, ao som de “Exaltação à Mangueira”. Para isso, você vai ganhar hum...digamos...trezentos mil dólares livre de impostos.
            Bom, eu não sei quanto a você, mas posso dizer que eu engoliria o pudor de meus glúteos brancos e ondulantes e responderia:
- Posso ao menos passar um Hipoglós?

domingo, 12 de fevereiro de 2012

BLADE RUNNER NO JARDIM PAULISTA

Chuva, fumaça, neon e Roy Batty (Rutger Hauer)

       Nasci em 1972, mas durante toda esta década eu não passava de um moleque muito louro e cabeçudo, com cabelos em forma de capacete, que jogava bola de mocassim sem meias e tinha uma cacharrel com um pinguinzinho no peito que fazia “Fiu Fiu” quando pressionado. Estilo, estilo mesmo eu desenvolvi foi nos anos 80. Usei calça de popeline da OP, relógio Champion que trocava pulseira, camiseta lilás, verde limão e laranja. Tinha carteira emborrachada, cabelo raspado e uma franja oxigenada que ia até o queixo. Era um “Manual dos anos 80” ambulante. Cada filme, moda, brinquedo, música daquela década eu assisti, segui, brinquei e escutei.
            Hoje os anos oitenta são pintados como uma década fútil, vazia e yuppie. Não tinha a inocência romântica dos anos 50, o charme revolucionário dos sessenta, nem a porralouquice disco dos 70. Injustiça. Nada mais nada menos que a melhor produção cinematográfica de todos os tempos pertence aos achicalhados anos 80. 
         Baseado num pequeno romance de Phillip K. Dick, “Blade runner – o caçador de andróides” conta a história de Deckard, um policial que tem por missão capturar quatro andróides foragidos que são mais humanos que os próprios humanos. Como se não bastasse o incrível roteiro, o visual é igualmente sensacional. Los Angeles decadente, escura e apinhada de gente falando uma mistura de japonês, espanhol e inglês. A combinação da chuva onipresente e da fumaça dos carros com o brilho do neon resultam num efeito belíssimo, emoldurado pela trilha sonora de Vangelis. Inesquecível. Mas a verdade é que eu contei tudo isso porque esta semana tive uma espécie de epifania bleidirrânica
      Chovia uma chuva bíblica quando saí da garagem e ganhei a Rua Batatais. Coincidentemente, o CD tocava “Blade runner end Theme” quando cheguei na esquina e vi, por entre os pingos, uma enorme placa de neon escrito “Rodoviária Jardim Paulista”. Entre os dentes, declamei:

“Vi coisas que vocês, homens, nem imaginam.
Naves de guerra em chamas na constelação de Orion.
Vi raios-C resplanderem no escuro, perto do Portal de Tannhaüser.
Todos esses momentos se perderão no tempo...como lágrimas na chuva.
Hora de morrer.

            E então, tive vontade de me ajoelhar na rua e de soltar uma pomba branca, como o robótico Roy Batty (vivido por Rutger Hauer) fez no filme. Mas tudo o que fiz foi arrancar com o carro, feliz por poder ver beleza em coisas tão prosaicas.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

EMIL ZATOPEK OU A LOCOMOTIVA HUMANA

Zatopek (à esquerda) e Mimoun

Aconteceu há muitos anos atrás. Muitos. Dezenas de milhares, para ser mais preciso. Dois macacos pelados encontraram-se na savana. Um deles levava uma clava, o outro, uma clava e um preá morto, atado à cintura. O macaco sem preá falou:
-Quero seu preá.
            O macaco com preá rebateu.
-Nem a pau!
            Conhecendo os milhões de anos de evolução dos macacos pelados até aquele instante, qualquer um poderia prever que uma contenda como aquela terminaria invariavelmente com pelo menos um crânio esmagado a pauladas. Mas então tudo mudou. Surpreendentemente, o macaco com preá disse:
-Está vendo aquele baobá lá longe? Quem chegar primeiro leva o preá.
            E correram. Calhou de ganhar o macaco sem preá. O adversário, sem maiores reclamações, desamarrou o preá da cintura e ofereceu o bicho ao outro macaco pelado dizendo:
-Parabéns.
            Ao que o outro respondeu
-Obrigado.
            Apertaram-se as mãos e foram embora, vencedor e vencido, com os crânios intactos. Não se ouviu guinchos intimidadores, nem urros violentos. Apenas um suave menear de cabeça e o civilizado “Obrigado”. Inventava-se assim, num único momento aparentemente banal, a corrida, o troféu, o campeão e, mais importante, o ser humano. Perceba-se então que o corredor é a essência do humano. E ninguém representou melhor esta essência que o grande Emil Zatopek, mais conhecido como a locomotiva humana.
            Emil já havia conquistado uma medalha de ouro olímpica nos 10.000 m e uma de prata nos 5.000 m em Londres quando foi para os jogos de Helsinque, em 1952. No primeiro dia, e com imenso favoritismo, ganhou fácil sua segunda medalha de ouro olímpica nos dez mil. Um dia depois, papou o ouro nos cinco mil. Mas então, quando todos acharam que Zatopek já havia terminado sua incrível participação nos jogos, ele foi sublime. De última hora, resolveu participar da maratona, prova que ele nem treinava. Sem a menor idéia do ritmo que deveria se impor, decidiu seguir o líder. Vinte e cinco quilômetros depois, achou que o líder estava lento demais e disparou, chegando dois minutos e meio à frente do segundo colocado.
            Quatro anos depois, um Emil combalido por uma hérnia tentou defender a medalha de ouro na maratona. E então ele foi mais humano do que locomotiva. Ao chegar em sexto lugar, foi cumprimentado efusivamente por seu grande amigo e rival Alan Mimoun, o vencedor. Mimoun, além de francês, era freguês e já havia perdido três finais olímpicas para Zatopek, que sempre o consolova, consternado:
-Sua hora vai chegar.
            E quando ela finalmente chegou, há quem jure que Emil, fora do pódio, estava mais feliz do que jamais esteve num final de prova. Abraçado a Mimoun, gritava em seu ouvido:
-Você conseguiu, meu amigo.
            E pensar que tudo começou com um preá...

domingo, 29 de janeiro de 2012

NELSON RODRIGUES 2012 - UMA HOMENAGEM AO ANJO PORNOGRÁFICO

O gênio, martelando sua Remington
com os indicadores

Uma flor de menina

            Dirce era uma flor, um doce de menina. No auge de seus dezesseis anos, tinha longos cabelos pretos, lisos e uma pele de porcelana. Magra e elegante, tinha os modos de uma princesa. Talheres, bombons e lencinhos de seda ela segurava usando sempre as pontas dos dedos. Muito nova e ingênua, bastava uma fita de romance no cinema para que ficasse de suspiros pelos cantos da casa. Sonhava com um marido carinhoso, que lhe beijasse a testa antes de sair e que lhe trouxesse flores ao chegar do trabalho. Nos dias em que ficava assim, área, era mais linda ainda e a mãe sempre lhe dizia, carinhosa:
- Volte para a Terra, minha filha!
            Nos chás promovidos pela mãe na grande casa em Laranjeiras, as tias não cansavam de comentar entre uma fatia de bolo de fubá e um cálice de Porto:
- Linda! Um biscuit!

Um pai muito severo

            O pai, Dr. Veiga, era um sujeito distinto e respeitado no meio jurídico. Especialista em direito de família, era um guardião moral daqueles que moravam naquela casa, e em especial da filha predileta – Dircinha. Dizia sempre que a virtude de seu lar é que lhe dava forças para suportar as vergonhosas disputas entre pais, filhos e irmãos que era obrigado a mediar dia após dia. Sem tirar o charuto da boca, costumava dizer que tinha que ser muito homem e muito direito para sequer olhar para Dirce. Para namorar, só com sua aprovação. Certa vez, a menina se engraçou com um vizinho. Pediu que a mãe intercedesse, perguntando ao Dr. Veiga se ele consentiria que o menino lhe fizesse a corte.
              Respondeu, seco:
- Ouvi dizer que joga sinuca a dinheiro. Não serve.
           E Dirce, com muita paciência, só dizia “sim senhor”. Outro pretendente, outra interseção da mãe e outra negativa:
- Muito pobre. Não serve.
           Outros dois pretendentes, outras duas interseções da mãe e outras duas negativas do pai. E a menina, muito doce, sempre as acatava com santa resignação. Um dia, Dircinha conheceu um moço belo e com um físico de Victor Mature. Era direito, de boa família e o melhor – era louco por ela. E ela era louca por ele. Feliz da vida, pediu que a mãe intercedesse novamente junto ao Dr. Veiga.
         O velho, embriagado pelo poder de veto, cravou:
- Não serve
            Desta vez, a menina retrucou:
- Não serve porque?
- Não serve porque não serve, ora bolas!
- Mas porque não serve?
- Não serve porque eu disse que não serve e ponto final. Cale a boca senão parto-lhe a cara, estás sabendo? Parto-lhe a cara!
            Dirce fuzilou o pai com o olhar, não disse mais nada nem derramou uma lágrima. Apenas deixou a sala.

O sumiço

            No dia seguinte, à mesa do café, a mãe aflita dá a notícia ao velho:
- Não está no quarto, não está no banheiro, na cozinha ou em lugar algum. Sumiu!
- Como sumiu?
- Sumiu, ora essa! Vai procurar tua filha, homem!
            Foi direto à casa do rapaz:
- Por aqui ela não passou.
            Bateu de porta em porta, em todas as casas da rua e nada. Chamou a polícia, colou cartazes nos postes. Nada. Passou-se uma semana nesta busca frenética sem pista alguma do paradeiro da filha. Passado este período, já pensava o pior. A própria polícia já dizia que, àquela altura, já devia estar morta, em alguma cova rasa na mata da Tijuca. Desconsolado, voltou ao trabalho.

A última marmita

            No escritório, liga o computador e abre o Gmail. No alto da lista, um e-mail direcionado a ele e a todos seus clientes. Clica, e no corpo da mensagem, há apenas um link para “www.dircinha_laranjeiras.blogsafadas.com.br”. Clica novamente, agora no link. E então, seu mundo veio abaixo. O site mostrava uma foto da filha, nua, numa pose lasciva. Estava atracada com um negro enorme cujo rosto estava borrado por um efeito ordinário de photoshop. Acima, lia-se:
“Bem vindos ao blog da Dircinha!
 Cada dia uma foto quente
 com um cliente diferente”
            Alucinado, o pai correu em direção á janela e atirou-se do décimo andar. Embaixo, a mulher lhe trazia a marmita e pode ver os últimos espasmos do marido espatifado na avenida.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

O CAMINHÃO BASCULANTE E O TABLET CHINÊS

Um brinquedo muito, mas 
muito chato mesmo...
Parecia uma boa idéia, mas era um brinquedo um pouco caro. Foram precisos meses de insistência e irritante manha infantil para consegui-lo. Vencida pelo cansaço, alguns dias depois minha mãe me entregou um pacote com o indefectível papel de embrulho da “Casa Arradi”. Com volúpia, rasguei aquela papelada toda e abri a grande caixa para, já de cara, ter a primeira decepção. Pilhas não incluídas. De joelhos, puxei a barra da calça do meu paciente pai: “Dez cruzeiros, pelamordedeus!”. Voei para o Bar do Seu Galvão e comprei duas Rayovac amarelíssimas. Agora meu caminhão basculante estava pronto para funcionar. Caminhões à pilha existiam muitos, mas nenhum como aquele. No teto da cabine do possante havia uma série de botões para direcionar o brinquedo – esquerda, direita, parar, levantar a caçamba e ir em frente. A graça durou nem quinze minutos. A verdade é que o brinquedo era um verdadeiro saco. Em tempos pré-controle remoto, era preciso acompanhar o movimento do carrinho e abaixar toda a vez que quisesse mudar seu rumo. Cansado daquele sobe e levanta, desliguei o irritante brinquedo, amarrei um barbante nele e saí pimpão pela Rua Riachuelo. Nunca mais ele funcionou movido à pilha.
Mas só contei a história deste caminhãozinho imbecil porque recentemente fiz uma compra que me provocou frustração semelhante: um tablet. Quando o aparelhinho chegou pelo correio, fiquei com a boca cheia d’água, imaginando rechear sua memória com uma infinidade de ebooks. Nunca mais eu gastaria um tostão com os jurássicos livros de papel. Imediatamente carreguei a bateria do meu “made in china” (obs.: não. Não era um Ipad) e passei uma madrugada aprendendo como alimentá-lo. Coloquei clássicos, biografias, Saramago e até uns bons suspenses de Stephen King. Depois de toda esta maratona tecnológico-literária, fui praticar meu esporte favorito: ler no banheiro. E foi então que veio a frustração. Acomodei-me para, como dizer...fazer minhas abluções e apertei o “power”. Durante uns dois minutos, a telinha exibiu “Android 2.1”. Quando finalmente pude abrir o ebook, já era tarde demais. O fato é que agora meu tablet chinês está guardado no armário da sala, junto com o espremedor elétrico de laranja e faca elétrica. No banheiro agora, só papel. Para tudo.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

NOSTRADAMUS NA RUA PIRACICABA

Nostradamus, o cara que adora jogar Angry Birds

     O ano novo começou com um desejo estranhamente banal. Biscoito de polvilho. Quando raiou o novo ano, preparei o primeiro café de 2012 e o aroma sensacional que sempre desponta desta frutinha maravilhosa despertou meu apetite para o quitute crocante. Sai para o dia nublado com destino à padoca e, mal havia caminhado um quarteirão pela rua Piracicaba, vi a estranha figura sentada junto ao muro dos fundos da concessionária Chevrolet.
   À primeira vista, era um típico mendigo. Calça e camisa folgadas e imundas. Cabelos e barbas muito compridos, ensebados e piolhentos. Calçava havainas (sempre esta sandália fatal) muito gastas e praticamente aderidas aos pés enegrecidos cujas unhas estavam arruinadas pelos fungos. Mas bastava uma observação um pouco mais atenta para perceber que ele era muito mais que um simples mendigo. Ao invés do tradicional cobertorzinho maltrapilho, ele se acomodava sobre o mais autêntico tapete persa. Ao seu lado, uma garrafa de Johnny Walker Gold label jazia pela metade. Em seu colo, via-se um Macbook Pro de dezenove polegadas onde brilhava a luzidia maçã de Steve Jobs. Estes luxos anacrônicos por si só já atraíram minha atenção, mas fiquei mesmo de queixo caído quando reconheci a figura. Havia visto muito History Channel durante as férias e percebi que aquele senhor era nada mais nada menos que Michel de Nostredame, mais conhecido como o profeta Nostradamus. Atravessei a rua e segui em sua direção.
            Ao me aproximar perguntei-lhe se estava tudo bem e ele, muito simpático, disse que sim. Em seguida quis saber por que tão eminente figura estava em tão miserável condição e ele me assegurou que era por pura opção e que adorava aquele jeito vagabundo de ser, afinal de contas havia sido ganhador da Megasena da virada do ano de 2010 e não precisava viver daquele jeito se não quisesse. Disse ainda que sua figura e cheiro desagradáveis afastavam os aproveitadores e garantiam seu anonimato. Assenti com a cabeça dizendo que compreendia, mas que não poderia deixar de importunar tão famoso vidente sem solicitar algumas profecias. Do chão, ali mesmo onde estava, ele apontou o indicador em minha direção e, muito sério, disse que me daria duas: uma sobre o Brasil e outra sobre o mundo. Mas eu tinha que prometer que o deixaria em paz após as revelações. Excitado, disse enfaticamente sim. E ele começou:
            “No Brasil, as chuvas vão trazer os morros abaixo. Casas serão soterradas e famílias inteiras perecerão. As emissoras de tevê vão transmitir imagens da devastação, com closes em geladeiras e bichos de pelúcia enlameados. Depois de horas de escavação, um coitado vai ser encontrado com vida sobre os escombros e vai ser apresentado no horário nobre como o “milagre da vida” em meio aquela devastação. No mundo, um homem bomba vai explodir em algum lugar público e levar consigo alguns azarados que não tinham nada a ver com a paçoca. Horas mais tarde, a Agência de notícias Reuters vai apresentar um vídeo em que um grupo terrorista assume o atentado e anuncia que o fanático explosivo fez aquilo em nome de deus e que agora ele estava muito bem obrigado, curtindo o paraíso com setenta virgens”
            Olhei desapontado para Nostradamus e disse que estava esperando algo menos previsível, do tipo “O Corinthians vai ganhar a Libertadores da América?”. Visivelmente irritado e sem tirar os olhos da tela de seu Macbook, o velho profeta disparou:
            - Olha meu amigo, eu só vejo o futuro. O que você está querendo é lá com Santo Expedito, nas Sete Capelas. E agora me deixa em paz que eu cheguei no nível sete de Angry Birds...

domingo, 1 de janeiro de 2012

O CRAQUE NUNCA TOMA AULA DE FUTEBOL

O bom jogador Neymar fazendo
o irritante "coraçãozinho" para as fãs
           
 A cada espirro nascem no Brasil pelo menos uns quinze bons jogadores de futebol. Outro dia, enquanto caminhava pela mata de Santa Tereza, sacudi uma árvore muito alta e caíram seis bons jogadores e dois sagüis. Cada time da primeira divisão do campeonato brasileiro tem pelo menos dois, senão mais. O bom jogador é tão comum que me dá vontade de bocejar. Agora, o craque é outros quinhentos cruzeiros. Há entre o bom jogador e o craque uma distância de cerca de doze mil quilômetros, com dois desertos, um vale e uma cordilheira no meio. O craque, ao contrário do jogador competente, é tão raro quanto a dália secreta rodrigueana. Ver o craque em ação é um privilégio, ver dois ao mesmo tempo é tão improvável quanto gravar o canto do uirapuru no cruzamento da Getúlio Vargas com a Nove de Julho. Mas no sábado, dia dezoito de dezembro de dois mil e onze, as oito e trinta, horário de Brasília, todos tivemos esta oportunidade.
            Messi, o craque chocado na Argentina e criado nas divisões de base do Barcelona, e Neymar, o topetudo cem por cento Vila Belmiro. Na terra do sol nascente, o campo era os dois mais vinte coadjuvantes. Dez minutos de partida e o que vimos foi a ameba catalã fagocitar a pobre bactéria santista, e o resto é história. Durante noventa constrangedores minutos, o incrível Barça nem tomou conhecimento do Campeão das Américas. Envergonhado, eu me encolhia na poltrona. Pizarro, o conquistador, foi mais condescendente com o imperador asteca Atahualpa. Mas para meu desgosto completo, o pior ainda estava por vir nas entrevistas.
            Como se ainda fosse um moleque das categorias de base, um humilhado e racional Neymar falou a verdade: “Tivemos uma aula de futebol”. Meneei a cabeça da esquerda para a direita, com as mãos nos olhos para esconder minha vergonha. Eu não queria a verdade. Eu queria ver uma jaguatirica acuada, esbravejando. Em campo, eu queria ver Neymar - perdendo de quatro a zero, vestir um quimono muito branco, pegar a bola no meio-campo e desembestar para a área inimiga gritando “Tora! Tora! Tora!”. Pode não ter sido seu melhor dia em campo, mas seu conformismo foi digno de um bom jogador.