domingo, 25 de dezembro de 2011

NOEL, O FOLGADO

Dica: Fique ridículo
usando o photoshop
            Sidra quente, fios de ovos, tender, bolo e cerveja. Eis a receita para gerar uma jaguatirica incandescente em seu estômago. E foi este incômodo felino que me acordou às três da manhã de natal. Sentindo suas unhas arranhando meu piloro, levantei em busca da garrafa de água gelada. Em direção à cozinha, achei que ainda estava dormindo quando olhei para a poltrona da sala de tevê e vi a inconfundível figura natalina. Estava passando “Esqueceram de mim”, e o velho Noel tinha no colo uma caixa aberta de especialidades Nestlé. Era engraçado como o bom velhinho ria das caretas de Macaulay Culkin, lambendo as pontas dos dedos cobertos de chocolate. Folgado, pelo menos ele teve o bom senso de tirar as botas antes de descansar os pés sobre o pufe.
            Incrédulo, me aproximei de Noel. Ele tomou a garrafa das minhas mãos, tomou um gole e disparou, sem tirar os olhos da tevê:
            “E aí? Você foi um bom menino?”.
            “Claro”, respondi. Continuei.
            “Mas me fala uma coisa. Você não tinha que estar por aí, distribuindo presentes?”.
            O velho levantou os olhos em minha direção e disse:
            “Você é burro ou o quê? Não sabe é que são os pais que compram presentes para seus filhos?”.
            Não me acuei ante a obviedade da afirmação e segui argumentando:
            “Bom...eu pensava isso antes de saber que você realmente existia. Agora eu já não sei...”. Era uma boa resposta, e o velho reconheceu, balançando a cabeça em aceitação. Pegou o controle remoto, abaixou o volume e disse:
         “Olha só...as pessoas confundem as coisas. Realmente, na noite da véspera de natal eu saio de trenó para dar um rolê por aí. Paro numa casa, como um sanduba de pernil. Vou à outra, como um peruzinho, roubo uma latinha de skol. De vez em quando, um moleque acorda para mijar e me vê assaltando as sobras da ceia. Ingênuo, o guri acorda no dia seguinte, abre o presente e pensa que fui eu quem deu”. E finalizou:
            “Agora que você já sabe a verdade, meu bom garoto, tome um pepsamar e vá dormir. Agüinha gelada não vai resolver”
            Quando acordei na manhã de natal, os adultos estavam à mesa. Enchi minha caneca com o líquido negro fundamental e quinze gotas de zerocal e sentei-me junto a eles. No chão, as crianças rasgavam furiosamente os pacotes. Minha irmã, filosófica, perguntou:
            “Irmão, você não tem saudades do tempo em que éramos criança e acreditávamos em papai Noel?”
            Segurei a caneca entre as palmas das mãos para sentir sua quentura. Sorvi um longo gole, e depois respondi:
            “Não”.

domingo, 18 de dezembro de 2011

O DIA EM QUE CHARLES BRONSON FUZILOU A CADELA DA MINHA MADRINHA

Paul Kersey (Charles Bronson) e sua estranha pistola de cano longo

Normalmente aos domingos, depois que eu traçava meu macarrão com frango requentado e Didi, Dedé, Mussum e Zacarias se empirulitavam, eu ia para a cama. Mas às vezes era anunciado que no “Domingo Maior” iria passar algum dos cinco filmes da série “Desejo de Matar”, com Charles Bronson. Aí eu me obrigava a aguentar o “Fantástico, o show da vida”, para assistir ao banho de sangue do fim de noite. Na série, Bronson era Paul Kersey, um cidadão comum que, após ver sua mulher morta a tiros e sua filha estuprada por três bandidos, passa a sair na noite para fazer “justiça” com sua estranha pistola semi-automática de cano longo. Eu ficava impressionadíssimo com aquilo.
            Àquela época, minha saudosa madrinha tinha uma cachorra horrorosa chamada Nina, que ela havia recolhido das ruas. Era uma vira-latas magricela, de cor esverdeada e dorso negro, cujas unhas muito compridas faziam “fiz fiz fiz” quando andava pela casa. Estava sempre de dentes arreganhados e não admitia que ninguém chegasse perto de sua dona. Mordia a mim e meus pobres primos sem o menor motivo aparente. Seu único ponto fraco eram os rojões e, durante as grandes decisões futebolísticas ou comemorações cívicas, o desprezível animal se escondia covardemente sob a mesa da copa. Eu detestava aquela cadela e ela estava prestes a sentir a fúria de Paul Kersey.
            Segunda-feira pós “Desejo de matar”. Chego da escola com fúria no olhar. Jogo a mochila sobre a cama e coloco meu coldre na cintura. Carrego meus dois revólveres Estrela com duas longas fitas de espoleta Ringo. Almocei armado até os dentes. Comi bife com arroz e feijão, lavei meu prato e escovei os dentes. Fui para a casa da minha madrinha e passei batido pela sala, sem cumprimentar ninguém. No quintal, meu desafeto canino estraçalhava uma cabeça de boneca. Ela sentiu minha presença e imediatamente ficou em pé, rosnando de maneira ameaçadora. Desafiadoramente parei em sua frente, com as pernas muito abertas e as mãos na cintura. Faltava só a trilha sonora de Sergio Leone. Ela correu em minha direção enquanto descarreguei meus dois rolos de espoleta em sua direção. Em meio ao caos de estampidos e fumaça, sorri enquanto a bicha fugia: “Claro, foi se enfiar embaixo da mesa”. Impiedoso, saí em seu percalço. Ninguém entendeu nada quando eu invadi a copa da minha Madrinha gritando “Venha sentir a fúria dos meus canos fumegantes, sua assassina!”.

domingo, 11 de dezembro de 2011

O MACABRO DESTINO DOS MOTOBOYS


A maldade do hediondo Craig Nelson parece não ter limites e quem tem acompanhado os noticiários sabe muito bem que estou falando dos sádicos jogos promovidos pela LU (Loteria Universal). Recentemente, a cruel Organização sorteou os nomes de novecentos motoboys residentes na cidade de São Paulo e proporcionou para os cidadãos daquela cidade um air show de horrores jamais visto.
            Os 900 sorteados foram levados ao Aeroporto Internacional de São Paulo / Guarulhos – Governador André Franco Montoro onde, sem receber nenhuma informação prévia, foram embarcados em dois Boeings 747. Uma vez instalados os malfadados passageiros, a aeronave alçou vôo e ficou sobrevoando em círculos o entorno do Aeroporto. Imprensa falada, escrita, televisada e digital foram convocadas para o evento. Devidamente instalados na cabeceira da pista, os jornalistas presenciaram e transmitiram o abjeto show, que só poderia ser mesmo fruto da mente degenerada de Craig. Durante a segunda volta das aeronaves, eis que surge um jato Dassault Mirage 2000 que, com dois mísseis certeiros, encheu os céus da capital paulista com duas imensas bolas de fogo. Inútil descrever o desespero dos familiares e amigos das vítimas e seu inconformismo com a gratuidade da tragédia.

            Agora, mais cruel mesmo que a LU e suas chacinas aleatórias, só mesmo a realidade. Novecentos é o número de motoboys que morrem anualmente na cidade de São Paulo. Como não são capturadas pelas câmeras de TV e são pulverizadas ao longo de 365 dias, estas mortes não chocam nem provocam inconformismo. Craig Nelson pelo menos deixou intactas as novecentas motocicletas de seus sorteados.

domingo, 4 de dezembro de 2011

O MÉTODO DAN LURIE

Nosso guru, Dan Lurie
          
              Eu estava bem comigo mesmo. Não ligava para minha barriga e tetas avantajadas conquistadas a base de muita bolacha, guaraná quinze, sofá e sessão da tarde. Eu era feliz entre meus falcons, playmobils, forte apaches, a molecada do bairro do sapo e a do colégio. Até que aqueles dois ovinhos localizados na altura da virilha, entre as duas pernas, inventaram de produzir e jogar na minha corrente sanguínea uma tal de testoterona. Aí então tudo mudou.
       Aquelas criaturas irritantes, de voz esganiçada e que choravam por qualquer coisa, de repente passaram a se tornar interessantes. Puxar suas Maria-chiquinhas perdeu a graça. Esconder grilos dentro do estojo delas perdeu a graça. Brincar de “menino pega menina” durante o recreio perdeu a graça. O recreio passou a ser nossa rodinha observando de longe a rodinha delas. Começamos a dar-lhes balas, pirulitos. Mandávamos bilhetes durante as aulas e éramos solenemente ignorados. Não éramos os moleques do colegial nem muito menos os Menudos. Passamos a ser os chatos. Éramos “crianças” demais.
            Em casa, lendo meu “Almanaque da Mônica”, veio a solução. No gibi, como de hábito, estava encartado o catálogo da Ediouro que continha “O método Dan Lurie de modelagem do físico”. No dia seguinte, levei a revistinha na escola e durante o recreio, convenci a molecada. Sabe porque elas não querem saber de nós? Por que nós não temos músculos. Vocês acham que o Rambo ou o Schwarzenegger têm problemas com garotas?
            Fizemos a vaquinha e, quinze dias depois, o método Dan Lurie chegou em casa pelo correio. A molecada ficou enlouquecida. Dan Lurie era o cara. Logo no começo do livro, havia uma foto de Dan tirando uma queda de braço com o então presidente americano Ronald Reagan. Entre as séries de exercícios propostos no livro, havia dicas de como abordar uma garota e de como melhorar a voz treinando com um osso de galinha entre os dentes. O método Dan Lurie era um misto de auto-ajuda com malhação. Empolgados, montamos nosso pequeno grupo de futuros “Mister Universo”. Durou uns quinze dias, até nós percebemos que tantos moleques juntos sem jogar bola era um desperdício. Dan Lurie foi trocado por uma bola Kichute número 5. Felizmente, as meninas caíram em si. Os Menudos estavam longe, lá em Porto Rico, e os caras do colegial nem queriam saber das pirralhas do ginásio. Mais ainda iria demorar um tempo até o gorducho comedor de bolachas se dar bem...

domingo, 27 de novembro de 2011

O RELEVANTE ACIDENTE DE HELICÓPTERO DA NOVA ZELÂNDIA


Eu bebericava o essencial líquido negro enquanto assistia ao noticiário da Globonews. Na pauta, a crise européia, a previsão do tempo, as mutretas do ministro do trabalho e as “impressionantes imagens de um acidente de Helicóptero na Nova Zelândia”. Algo me soou errado. Olhei para o fundo da caneca e, fitando meu reflexo tremulante, tive a iluminação.
Primeiro o que estava errado. O mundo passa por um momento importante. A Comunidade Européia, o centro do mundo ocidental, passa por uma crise político-econômica que pode levar ao seu esfacelamento e isso tudo é apresentado numa reportagem de uns três minutos. Os mesmos três minutos utilizados para mostrar o tal acidente de Helicóptero. Não me entendam, mal. Sinto muito pela família dos tripulantes da aeronave, mas venhamos e convenhamos. Por que mostrar “impressionantes imagens” no noticiário? “Dá audiência” diria você. Sim, dá audiência. Mas no melhor estilo socrático, pergunto porque é necessário mesclar “imagens impressionantes” ao noticiário para aumentar a audiência?
Acho que a resposta mais uma vez está nas cavernas. No tempo de meu tatatatatatatataravô Ug!, ninguém sabia o que era PIB, moeda, governo ou Europa. A comunidade era uma pequena tribo de uns trinta gatos pingados. “Notícia” era quando um dente-de-sabres atacava e matava um ou dois. Nós evoluimos para nos chocar e solidarizar com o drama individual. O nosso intelecto sabe que a coisa está preta na Europa, mas nosso eu primitivo se choca mesmo é com uma bola de fogo girando desgovernada.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

SOM POP E A MÁSCARA DO KISS




Numa dada manhã modorrenta em mil novecentos e oitenta e nada eu aprendia as regras da potenciação quando chegou o bilhete. Desdobrei o papelzinho amarrotado e me deparei com a esquisita caligrafia arredondada de Paragua. Dizia simplesmente assim: “eles tiraram a máscara”. Se um bilhete assim tivesse chegado a mim hoje, eu nem entenderia. Quem tirou a máscara? Mas naqueles anos, eu sabia muito bem. Meu coração disparou e a cabeça começou a rodar. O segredo mais bem guardado do Rock and roll (R &R) havia sido revelado. O Kiss tirou a máscara.
            Na saída da escola, a molecada em roda discutia a novidade. Um cara disse que ligou para o tio dele que morava nos EUA e o tio havia dito que tinha visto a foto do Kiss sem máscara. Que injustiça! Como é que um cara velho que nem curte um R & R conhecia o rosto do Kiss e eu não? Fui embora contrariado. Em casa, almoçando em frente à TV, meu coração dispara de novo. “Não perca neste sábado no Som pop, o novo clip dos ex-mascarados do Kiss”. Era quarta, e até o próximo sábado, não conseguiria pensar em mais nada. Arrastei os dias e as horas. Minha mãe percebeu meu estado alterado. “Porque você está tão agitado, ansioso?”. Ela não entenderia. O Kiss havia tirado a máscara e eu só veria seus rostos no sábado. Eis que o sábado chegou. Éramos uns dez moleques reunidos para ver o “clip dos ex-mascarados do Kiss”. Exultantes, ouvimos pela primeira vez “Lick it up”. Obviamente, o tão aguardado vídeo foi o último do programa que, ao acabar, dispersou minha ansiedade.

            Então estamos em novembro de dois mil e onze. Artigos científicos, relatórios e capítulos de livros para preparar. Teses, dissertações, trabalhos de conclusão de curso e provas para corrigir. Pintura e conserto das portas e vitrôs do apartamento. Presentes de final de ano. A ceia de natal e o Reveillon. Esticar o 13º salário. Revisão no carro. Final do campeonato brasileiro. Duzentas mil coisas na cabeça ao mesmo tempo. Duzentas mil preocupações e eu me pergunto: que horas vai acabar esse Som pop?

domingo, 13 de novembro de 2011

FILOSOFANDO COM A PANÇA CHEIA DE FEIJÃO TROPEIRO

Via de regra, nossas cidades começaram da seguinte maneira. Confortavelmente instalados no litoral, olhamos para a imensidão verde do oeste e sentimos um comichão, imaginando riquezas infinitas ali escondidas. Botamos o chapelão na cabeça e enchemos o embornal com farinha de mandioca e um naco de toucinho. Lubrificamos o trabuco e afiamos o facão. Demos um beijo na esposa, passamos a mão na cabeça dos filhos e partimos. Chegando a uma região mais ou menos plana e com um curso d’água, desbastamos a mata, trazemos a mulher e os moleques e plantamos cana ou café. Vem então a igrejinha, o coreto e a prefeitura. E o resto é história. Mas em Ouro Preto não foi assim. Ouro Preto tinha ouro e um relevo inclemente. Hoje o ouro se foi e ficaram as ruas verticais e as belas igrejas que sustentam a economia da cidade.
            Estive em Ouro Preto recentemente e escalei três Kilimanjaros, quatro K9 e cinco Everestes para comprar cotonetes. Com a pança cheia de Feijão tropeiro com bisteca de porco, amaldiçoei cada passo naquelas pirambeiras improváveis. Mas na porta da farmácia, em frente à feirinha de artesanato em pedra sabão e da Igreja de São Francisco de Assis, tive a revelação. Em Ouro Preto, as ladeiras zombam da nossa ganância passada.

domingo, 6 de novembro de 2011

PAULO LUMUMBA, CAMPEÃO MUNDIAL DE PAR OU ÍMPAR

            E eis que a população mundial excedeu a barreira dos sete bilhões de habitantes. Para comemorar o fato, Craig Nelson e a equipe da Loteria Universal (LU) promoveram o “Primeiro Campeonato Mundial de Par ou Ímpar”, cujas regras foram bastante simples:
1-     Todos os habitantes da Terra com pelo menos um dedo em alguma das mãos e mais de 5 anos de idade são obrigados a participar.
2-     Basta perder uma disputa e o participante é eliminado.
            No supercomputador da LU, o banco de dados com o cadastro de todos os seres humanos existentes foi usado para sortear as partidas. Minha vizinha, Dona Cida, teve que tomar um vôo para Kuala Lumpur para encontrar seu oponente. Perdeu logo na primeira rodada e deu graças a Deus de não ter mais que viajar só para disputar um simples par ou ímpar. Mas ela era uma exceção. A maioria estava é gostando da brincadeira.
            A rodada de número 29, conhecida como “A grande final”, obteve os maiores índices de audiência jamais registrados na história. Metade do planeta torceu para Den Li Chang, o representante chinês. O restante, para Paulo Lumumba, de Angola. Eu particularmente torci para Paulo por pura fraternidade lingüística. E ele ganhou. 
            Paulo Lumumba, com suas incríveis 30 vitórias seguidas, foi sagrado o primeiro campeão mundial e instantaneamente tornou-se uma celebridade. As pessoas viam Paulo como uma espécie de profeta. Cultos chegaram a ser criados para adorá-lo. Mas, assim como veio, sua incrível fama se dissipou. E foi assim que aconteceu. 
          Seis meses após o término do Campeonato e aproveitando a popularidade de Paulo, a voraz LU organizou o "Primeiro Campeonato Mundial de Cara ou Coroa", nos mesmos moldes do campeonato de par ou ímpar. Desnecessário dizer quem era o grande favorito. Impossível descrever a comoção mundial causada pela derrota de Lumumba logo na primeira rodada. O grande campeão foi batido em casa por Dona Cida, que após o grande feito simplesmente levantou os olhos e disse em voz alta para si mesma: "para onde é que eles vão me levar agora..."

domingo, 30 de outubro de 2011

REBELDIA CELULAR

           Um velho e doce amigo me ligou esta semana e deu a mais amarga das notícias. Tinha câncer. Pior, no cérebro. Durante a ligação, entre constrangido e engasgado, sondo para saber maiores detalhes:
- E os prognósticos?
- Não tem prognóstico. É grau quatro.
            Não faço idéia do que seja grau quatro, mas nem preciso perguntar para saber que deve ser grave. Ou melhor, gravíssimo. Cinco segundos de silêncio constrangedor enquanto penso num consolo via Embratel. Não encontro. Tudo que consigo dizer é:
- Cara, desejo o melhor para você.
            E desvio o assunto para banalidades e recordações do tempo em que nossa amizade compartilhava a rotina do dia a dia.
“O trânsito de São Paulo está impossível. Um dia essa cidade pára”.
“E fulano? Onde anda?”
“Bla bla bla”.
            Não sei por que, mas achei que um pouco de normalidade, desviar o assunto que lhe deveria assombrar as idéias durante vinte e quatro horas por dia, era o melhor a fazer. Desliguei o telefone com um “a gente vai se falando” e comecei a pensar sobre essa doença funestra.
            Há um tempinho atrás, mais ou menos uns três ou quatro bilhões de anos, um grupo de células que nadava no caldo primordial tiveram a idéia genial: criaturas multicelulares. Para isso, era preciso definir muito bem os papéis. Todo mundo teria que ficar bem unido e bem comportado, enquanto umas células captavam nutrientes, outras formavam uma camada protetora, outras ainda eram responsáveis pela mobilidade da criatura e por aí vai. Eis que essa idéia foi tão longe que originou um bicho muito esperto, vulgarmente chamado de “homem”. Quem o faz ser tão esperto é justamente um grupo de células bem guardadas no topo de uma caixa óssea chamada “cabeça”. E é justamente aí o problema do meu caro amigo.
            Anarquicamente, algumas destas células cerebrais decidiram multiplicar-se a esmo, sem o menor controle. Romperam o sagrado pacto juramentado há bilênios (se é que existe essa palavra). Eu, do alto da minha incapacidade, só posso praguejar: maldita seja a rebeldia celular.

domingo, 23 de outubro de 2011

O CÚMULO DA GANÂNCIA

         Seu Firmino era jardineiro contratado pela Prefeitura Municipal de Petúnias. Passava o dia na carroceria da caminhonete, indo de canteiro em canteiro, carpindo um matinho aqui, plantando uma maria-sem-vergonha ali. E a cada centímetro carpido ou muda plantada, dava uma paradinha de uns cinco minutos para curtir uma sombrinha e enrolar um cigarrinho. Tinha o hábito de bater nas portas das casas para pedir um copo de água. Tudo desculpa para um dedo de prosa. Antigamente podava árvores também, mas agora a idade já não permitia. No fim das contas, estava só esperando a aposentadoria. Era um tipo. Paradoxalmente seu uniforme de trabalho, de brim verde, estava sempre impecavelmente engomado e limpo. Ao invés de botas, calçava sapato social. Para se proteger do sol, usava um chapelão de palha de abas exageradamente grandes que, com os bigodes fartos, lhe dava um ar de Pancho Villa.
            Religiosamente passava na lotérica e fazia uma fezinha na megasena. Uma vez ganhou. Acertou os seis dos sessenta números possíveis. Sessenta milhões de reais. E então o absurdo aconteceu.
            Apesar do sigilo, não se sabe como o sujeito descobriu. Mas o fato é que, no dia seguinte ao feliz sorteio, parou uma caminhonete Silverado preta com detalhes cromados muito brilhantes na porta da casa de Seu Firmino. Dela desceu um homem muito elegante e educado. Entrou para um cafezinho e fez a seguinte proposta para Seu Firmino:
            - “Seu Firmino, meu nome é Craig Nelson e represento a Loteria Universal. Deixe-me explicar melhor. A Loteria Universal é um concurso onde só entram pessoais mui especiais, como o Senhor. Para participar, é simples. É como a Megasena, mas com algumas alterações. O Senhor escolhe dez números entre cem números possíveis, os sorteios são mensais e, se acertar, leva a bolada de cem bilhões de reais. O bilhete custa sessenta milhões”.
            O jardineiro não hesitou. Pegou o talão de cheques, comprou um bilhete onde marcou os seguintes números: 14, 25, 87, 90, 43, 21, 22, 23, 99 e 04. O sorteio foi na sexta-feira. Não ganhou. Os amigos e vizinhos de Seu Firmino ficaram divididos. Aqueles que eram evangélicos acharam que o homem da Silverado preta era o capeta que veio à Terra para tentar Seu Firmino. Os demais acharam que Seu Firmino era burro mesmo.

domingo, 16 de outubro de 2011

NOTAS TURCAS III OU INDO MUITO LONGE

Chego do Congresso louco para tirar a camisa de mangas longas e a calça jeans coladas ao corpo de tanto suor e impregnadas dos cheiros de tantos sovacos internacionais. No quarto do hotel, tiro tudo, jogo em cima da cama e coloco minha bermudona florida. Olho para o espelho, dou um tapa na pança e, enquanto observo as ondas de choque se espalharem pelo meu abdômen, concluo que pareço um surfista hipercalórico.
            Vaidades à parte, chego à praia e meto as canelas nas mornas águas do Mediterrâneo. Enquanto caminho, sinto a massagem relaxante das pedrinhas muito pequenas e arredondadas nas solas dos pés. Na paisagem ao fundo, uma belíssima cadeia de montanhas com um por do sol tão clichê e bonito que até dói. Tento pensar em coisas belas que Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade ou Vinícius de Morais diriam e morro de inveja, porque tudo que consigo pensar é:
            - Se eu fosse Luke Skywalker e estivesse em Tatooine, estaria vendo dois sóis se porem.
            Envergonhado de um pensamento tão pop num momento tão absoluto desses, volto para o hotel e encontro, próximo ao bar da piscina, um garoto com o indefectível nariz turco mas com estranhos olhos trágicos de cantor de tango. Até onde posso entender, seu nome é alguma coisa como Erguelen. Erguelen tem ao seu lado um telescópio apontado para o espaço com um pequeno cartaz escrito à mão afixado onde se lê: “Observing is free”. Quando pergunto o que é possível observar no céu naquele dia, ele me mostra Júpiter e me explica excitado, num inglês quase sem sotaque, que os pontinhos pretos que posso observar ao seu redor são suas quatro luas.
            Agradeço ao pequeno Erguelen e, enquanto me encaminho ao restaurante para encarar mil tipos de pratos à base de berinjela, penso que tive que ir até a Turquia para visitar Júpiter e suas luas. Este sim é o pensamento profundo que estava procurando.

domingo, 9 de outubro de 2011

O DIA EM QUE ENCONTREI ADOLF, O CRÁPULA, NAS LOJAS AMERICANAS

Aquele que afirma que o futebol é o esporte preferido do brasileiro é um sujeito muito mal informado. O esporte preferido do brasileiro é, de longe, garimpar DVDs nas Lojas Americanas. E eu, tendo nascido sob este céu cor de anil - um legítimo filho deste solo, não haveria de ser diferente. No Shopping, sábado à noite, tomo uma casquinha mista e sigo para as prateleiras repletas do referido produto audiovisual. Estendo a mão sobre a fileira de caixinhas plastificadas e, dando pequenos passos com o indicador e o dedo médio, os títulos se sucedem à minha frente. Ben Hur, Ivanhoé, Top gun, outro Ben Hur, uma sequência de noviças rebeldes. Outro Ben Hur. Respiro fundo. Como os antigos sonhadores de Serra Pelada e em meio ao caos maçante, sigo na busca do título inusitado, único. Aquele filme que sempre quis assistir e não sabia existir em DVD.
            Eis então que topo com o abominavelmente instrutivo “Triunfo da vontade”, de Leni Riefenstahl. Cabe a explicação. Em 1934, Hitler encomendou a sua muito talentosa cineasta preferida, um documentário sobre o Sexto Congresso de Nuremberg. Fico curioso. Sempre assisti a documentários onde o Bigodinho aparece em meio a bombardeios ou inspecionando tropas. Como seria ver a Alemanha e seu líder quando tudo era progresso e confiança? Comprei e conferi na mesma noite. Brevemente, eis as impressões. Em tempos em que o som é uma novidade no cinema, o filme é transpassado por marchas militares e discursos inflamados. Durante setenta por cento do tempo, o "Fürher" desfila numa Mercedes conversível pelas ruas apinhadas de gente de uma Nuremberg coalhada de antigas construções históricas. Siege heil pra cá, Siege heil pra lá. E dá-lhe mão direita esticada, crianças, mulheres e soldados sorrindo. Uma pérola: “Um povo que não cultiva a pureza de sua raça há de perecer”. É demais para mim. Dou um stop e vou ler o jornal, mais especificamente os cadernos de política e esporte.
            Em “política”, as tramóias de sempre. Sarney se safa de mais uma investigação. Tentativas de aprovação de um novo imposto para a saúde. Mascarado de medida de apoio a Indústria nacional, Dilma defende o novo IPI para os carros importados. Waldemar da Costa Neto, Jaqueline Roriz e Renan Calheiros. Sorrio feliz. É melhor uma democracia torta destas que um regime baseado na certeza de um louco munido da procuração de toda uma nação. Abro a página de esportes. Na foto, Lucas e Neymar, dois moleques cor de caramelo que moeram a zaga argentina no último amistoso. Sorrio feliz novamente. Basta um peteleco, uma foto na seção de esportes, para derrubar toda a idéia da superioridade ariana. Meu conselho: assista ao filme. E enquanto estiver fazendo isso, chame seu filho na sala, aponte o dedo para a tela e diga “Eis aí um grande filho da puta”. 

domingo, 2 de outubro de 2011

NOTAS TURCAS II OU O CACHORRO PAVLOVIANO DO PADRE CHIQUINHO

Eu e minha muito amada irmã temos uma diferença de seis anos. Não que fossemos como Caim e Abel, mas como acontece em toda família saudável, durante nossa infância e adolescência tínhamos brigas de proporções épicas. Um desentendimento acerca do que ver na TV e resolvíamos a contenda esgrimindo rodinho contra piaçava. Qualquer colher de pau, cinzeiro, saca-rolhas ou porta-retratos virava uma arma de longa distância. Os famigerados tamancos de madeira, moda na época entre as meninas e que faziam um irritante teleque-teleque no caminhar eram particularmente mortíferos. Pior para mim, que vivia descalço. Quando ela “adolesceu” e eu continuei um moleque boboca, ela começou a aplicar técnicas psicológicas de tortura. Exemplo:
- Sabia que você não é filho do papai e da mamãe? Você foi pego na lata do lixo.
- Mãe! Ela falou que eu fui pego na lata do lixo.
- Mentira, meu filho. E você, vê se para de atazanar seu irmão com essas besteiras!
E então minha irmã virava e falava baixinho no meu ouvido:
- Bobo, você acha que ela iria te contar a verdade...
            Entre tantas outras, a melhor era a do cachorro pavloviano. Explico. Se você é jauense ou viveu em Jaú durante a época do padre Chiquinho, há de se lembrar que lá pelas cinco da tarde, o padre tocava trilhas sonoras de filmes de bangue-bangue nos megafones da igreja Matriz para chamar os fiéis à missa diária. Para mim, esses chamados significavam outra coisa: ir para casa e tomar banho. E então, ao som dos assovios de “O dólar furado”, eu corria para casa e entrava esbaforido. Minha irmã ria e falava “Que bonitinho! É só escutar a musiquinha que ele vem rapidinho. Parece o cachorro do Pavlov. Reflexo condicionado puro!”. Minha mãe dava a necessária bronca, mas era inevitável rir. A piada era muito boa. A mim, só restava ficar duplamente irritado. Primeiro porque minha mãe ria e segundo porque eu não entendia nada.
            Istambul, 10 de setembro de 2011. Enquanto caminho pelo antigo hipódromo próximo à praça Sultanahmet, ecoa pelos minaretes da estonteantemente bela Mesquita Azul, o chamado às preces: “Allah Akbar...Allah Akbar...Allah Akbar...Allah Akbar…”. Meus companheiros de viagem logo se emocionam com esse exótico toque de cultura islâmica. Quanto a mim, amaldiçôo minha linda irmã, pois tudo o que sinto é vontade de tomar banho.

domingo, 25 de setembro de 2011

CAFÉ, EU TE AMO

As cinco e quarenta e cinco da manhã, o alarme do despertador soa como as trombetas que anunciam o fim do mundo. Algum gênio do mal projetou o infame eletroeletrônico de modo a tornar o desligamento de seu berro maldito tão complexo que se faz necessário sentar na cama para encontrar o minúsculo botão “off”. Imediatamente aliviado da tortura auditiva, mas irreversivelmente acordado, olho para o berrante display verde onde os números enormes anunciam: “Cinco e quarenta e seis”.
            O quarto continua tão escuro quanto estava à hora em que me joguei na cama de braços abertos tal qual o Cristo Redentor. Automaticamente sigo para o banheiro, desviando inconscientemente das meias, sapatos e havaianas dispostas pelo caminho. Acendo a luz e recebo a violenta chicotada de fótons na retina. Suporto a dor com hombridade e encaro a criatura devastada no espelho. Os fios que restam na cabeça parecem um bando de suricatos em alerta. As dobras dos lençóis estão fielmente carimbadas nas têmporas e os olhos têm um “quê” asiático. Os beiços estão inchados e é possível sentir e ver, saindo da boca, um hálito pestilento e um rastro de baba seca craquelada, parecido com os leitos  vazios dos rios temporários do semi-árido brasileiro. Fico contente em ver que o abdômen parece menor e crio a primeira teoria do dia: “Ficar na horizontal por mais de cinco horas espalha mais a gordura corpórea, dando a impressão de que a barriga é menor”. Apoio as duas mãos na pia, encolho os ombros e dou um suspiro tão longo quanto há de ser meu dia. Eis então que tenho a idéia brilhante. A mesma idéia brilhante que tenho diariamente há décadas: uma xícara de café.
            Giro os calcanhares e vou até a cozinha. Fervo dois copos de água enquanto visto o porta-filtros com um Melita 103 cujas bordas foram carinhosamente dobradas. Encaixo tudo na boca da garrafa térmica e acrescento duas colheres de sopa bem grandes de pó. Neste ponto, a água já ferveu e então a mágica começa. Mal acabo de verter o fumegante solvente universal sobre o material negro e o familiar aroma já começa a lubrificar meus neurônios. Impaciente, não espero nem acabar o processo de filtração para já encher minha caneca. Quinze gotas de zerocal. O primeiro gole e a solução de todos os problemas do dia começam a espocar na minha mente. Depois da primeira caneca, tomo um banho rápido e me vejo frente ao espelho mais uma vez. Nem sinal do monstro de dez minutos atrás. Enquanto escovo os dentes, constato que, de cabelos domados, até que não pareço tão careca. Na verdade, tenho é uma testa muito alta que parece combinar com os olhos verdes e com o grande nariz romano. Os sulcos impressos pelos lençóis já não são mais visíveis, pois minha pele ainda é suficientemente elástica para retornar à sua forma original rapidamente. Faço as pazes com meu rosto, mas não com a barriga. Vinte minutos na vertical bastaram para o tecido adiposo voltar para os quadris. Mesmo assim, sigo contente, pois isso é mais um ponto a favor da minha teoria.
            Visto calça, camisa e sapatos. Ponho a mochila nas costas, meu escritório portátil. Mesmo de dentes escovados, não resisto. Esvazio a garrafa térmica. Só mais um golinho, sem adoçante mesmo. Nestes últimos instantes antes de sair de casa, olho para o belo anel negro contrastando com o branco da porcelana no fundo da caneca e penso. Café, você é a mais sutil de todas as drogas. Você torna as manhãs tão mais fáceis! Eu te amo, Café. Não importa quão amarelos fiquem meus dentes ou quantos furos você faça em meu estômago. Eu nunca vou te abandonar.

domingo, 18 de setembro de 2011

NOTAS TURCAS I OU DUAS VEZES ENGANADO PELO IDIOMA

Entrei em casa suado e faminto, com minha bola kichute número 5 embaixo do braço. Na cozinha, vejo o vapor da panela de pressão e minha adorável tia Ana Maria segurando um garfo grande como o tridente do capeta com uma escancarada língua bovina espetada na ponta. Duvidando da possibilidade de que aquele órgão improvável venha a ser meu almoço, lanço a pergunta retórica:
- O que é isso?
           Despeitada, minha doce tia retrucou. “Língua de boi”. Dei a tréplica. “Eu é que não vou comer essa coisa”. Entrei, tirei meu bamba, lavei a mão no banheiro e fui à mesa. Nem sinal daquela amputação horripilante. No lugar, uma travessa com um espesso molho de tomate com azeitonas e pequenos pedaços roliços de uma carne tão macia que desmanchava só de olhar. Nem uma palavra, minha tia faz o meu prato. Como tudo com pão e solto o elogio:
- Que delícia! O que é isso?
- Idioma.
- Sensacional, bota mais um pouquinho aí para mim.
            Antália, 7 de setembro de 2011. Saio da palestra faminto e doido para descobrir os exóticos sabores da Turquia. Encho meu prato com diferentes e impronunciáveis formas de berinjela e com um cereal meio arredondado e bege. A plaquinha de identificação da travessa diz “Pilav”. À mesa, encho meu garfo com o tal Pilav e sinto um muito familiar gosto de arroz. À noite, já no hotel, instigado pelo sabor conhecido e pela sonoridade gostosa da palavra, digito “Pilav” no Google tradutor. Eis a resposta: arroz. Pela segunda vez na vida, fui enganado pelo idioma.

domingo, 11 de setembro de 2011

FRANK FAZ TODA A DIFERENÇA

Rapaz, se tem uma música que é capaz de me emocionar, essa música é “My way”. E faz tempo que ela tem esse poder sobre mim. Desde 1980, para ser preciso. Nesse ano, Frank Sinatra veio ao Brasil e fez um show no Maracanã que a rede globo anunciou com um estardalhaço tão grande que até um pirralho de oito anos como eu ficou curioso para ver. E foi mágico. Claro que eu não fazia idéia de quem era Sinatra, mas digo que foi mágico pela reação que ele causou em meus pais. Sentados à velha mesa de jantar e com olhos úmidos, os dois entrelaçaram as mãos sobre o tampo de fórmica, cantarolaram o refrão e enrolaram um lá-lá-lá no restante da letra. Pela primeira vez na vida, percebi que eles eram homem e mulher antes de serem meu pai e minha mãe.
            Muitos anos depois, numa aula de francês, descobri que “My way” era na verdade uma versão de um clássico da chanson francesa intitulado “Comme d’habitude”. Na aula, enquanto escutava Mireille Mathieu cantando a “My way” francesa e fazia a tradução da letra, percebi que ela tratava do tédio de uma relação onde tudo era fingimento, onde o amor já era. Muito diferente da letra americana, onde um cara faz um balanço de sua vida e chega à conclusão de que, apesar de ter dado umas vaciladas, no final das contas ele fez tudo que devia ter feito. E do jeito dele.
            Hoje, enquanto ia à padaria escutei no rádio Salomão Schartzman apresentar, com sua voz grave e deliciosamente narcótica, uma tradução simultânea de “My way”. Enquanto comprava uma bengala, dois litros de leite Fazenda Bela Vista light e duzentos gramas de muçarela tentei decidir entre a versão francesa e a americana. Qual a mais bonita? Mais tarde, e já em casa, abri minha gaveta de vinis de estimação, assoprei a velha bolacha do Sinatra e botei para rodar. Não há mais dúvida. Frank faz toda a diferença.

domingo, 4 de setembro de 2011

RESPEITEMOS O LADRÃO

O ladrão é aquele que rouba. É aquele que se apropria indevidamente de alguma coisa que definitivamente não lhe pertence. Ele prefere dinheiro, que tem maior liquidez. O ladrão e sua atividade, o roubo, dependem da prosperidade daquele que é roubado. Via de regra, se o roubo não estiver associado a alguma violência, o sujeito roubado supera emocional e materialmente a perda em questão de dias.
            De volta aos noticiários, a corrupção é outra atividade ilícita que muitas vezes é confundida com roubo. Para detrimento do ladrão, mais do que confundida, a corrupção é muitas vezes chamada de “Assalto aos cofres públicos”. Absurdo. Eis onde quero chegar. Chamar um político ou qualquer servidor público corrupto de ladrão é ofender o ladrão. Segue-se a explicação.
            Para melhor defender meu argumento, é preciso antes inventar uma figura quasi-borgeana: o Alvará. O Alvará é o documento público que contém todos os documentos públicos. Todo certificado, certidão, concessão, licitação, liberação, selo, atestado, carimbo, assinatura, rubrica, protocolo, processo, relatório, requisição, requerimento, comprovante, recibo, multa, vale, diploma ou qualquer outra benção que o Estado precise emitir para desembaraçar sua vida está contido no Alvará.
            Em algum momento da vida, nossa prosperidade esbarra na necessidade do Alvará. Sem ele não existimos e nada produzimos. O corrupto tem plena consciência dessa necessidade e tudo faz para valorizar a emissão do Alvará. Há de se gerar demanda, gerar uma pilha de pedidos para poder burlar, uma fila para poder furar, um jantarzinho para azeitar relações. Tudo obviamente, à troca de um favorzinho, de uma garrafa de vinho. Ou de uma mala de dinheiro, talvez. Eis então a desgraça da corrupção. Para que o corrupto prospere, é preciso que ele asfixie até a quase morte a prosperidade geral. Tudo há de ser difícil para que facilidades possam ser negociadas, mesmo que para isso nada funcione. Respeitemos pois, o ladrão.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

BEATIFICAÇÃO PARLAMENTAR

Bom dia, meu nome é Belzebu. Desde que nasci sempre fui o cão. Enquanto saía da barriga da minha mãe, arranhei seu útero só para escutá-la urrar de dor. Foi só nascer meus primeiros incisivos que eu arranquei o mamilo materno esquerdo. Preferia seu sangue ao leite. Ainda na primeira infância, amarrei o rabo do gato ao do cachorro, raspei a cabeça da minha irmãzinha, soltei o freio de mão do nosso fusca só para vê-lo arrancar o portão e bater no muro da frente. Joguei quilos de sal na horta para que nada mais brotasse. Já moço, inventei para meu pai que minha mãe tinha um caso com o padeiro e com o leiteiro. Botei fogo na casa. Arranquei a sangue frio os dentes de ouro da vovó, roubei a lata de bolachas onde a família escondia as economias e fugi de casa.
Fui para Brasília. Elegi-me deputado federal. A cerimônia de recebimento do diploma foi uma espécie de beatificação. Tornei-me então um ser de luz. Mudei meu nome para São Bel. Passei a usar túnica branca. Um sacoleiro me trouxe do Paraguai uma auréola de neon. Deixei crescer os cabelos e uma longa barba branca. Questão de imagem. Fiz plástica para ficar com olhos de filhote pidão. Fiz estágio com os monges beneditinos para aprender a entoar cantos gregorianos. Tornei-me o deputado da família, dos idosos e do aleitamento materno.
E foi então que minha irmã, que nunca havia me perdoado por raspar sua cabeça, apareceu com um vídeo em que eu aparecia arrancando os valiosos dentes da vovó. Divulgou na imprensa. O Brasil viu o deputado santo enfiar um alicate na boca da velhinha, chacoalhar sua cabeça e então sair com um molar dourado, com raiz e tudo. Como não podia deixar de ser, fui acusado de quebra de decoro parlamentar. Subi ao palanque para me defender:
- Senhores. Se cometi alguma iniquidade, isso aconteceu quando eu ainda não era deputado. Como poderia responder por erros cometidos quando ainda não havia sido ungido com a beatificação parlamentar? Pergunto o que seria desta casa se todos respondêssemos pelos nossos erros quando ainda éramos impuros?
Num silêncio constrangedor, votaram todos secretamente pela minha absolvição 

domingo, 28 de agosto de 2011

FÁBULA DARWINIANA SOBRE BUNDA-MOLISMO



             Esta história é contada em minha família há milhares de gerações. No passado, há mais ou menos um milhão e meio de anos, aquele que viria a ser meu paleo-avô Ug! vivia numa pequena tribo de caçadores-coletores em algum lugar da África subsaariana. O curioso é que a tribo de vovô Ug! era composta por quinze homens e apenas uma mulher: aquela que viria a ser minha paleo-avó Tulah.
            Dada a escassez do gênero feminino, não é difícil imaginar como era a dura a vida dos homens da aldeia. Eles faziam de tudo para conquistar a dengosa Tulah. Traziam lindos casacos de pele de preguiça gigante e belíssimos colares de dentes de sabre. Convidavam-na para belos jantares à base de picanha de mamute e entretinham-na com lutas sangrentas para exibir coragem. Vovó Tulah, exclusiva, apenas suspirava de desinteresse. O exótico vovô Ug! mantinha-se sempre afastado das disputas. Passava grande parte do tempo em sua caverna dormindo, comendo ou desenhando bichos, plantas e cenas de caçadas nas paredes. Ao entardecer, quando a fome batia, ele pegava sua clava e procurava um buraco de tatu. Esperava o bicho sair e dava uma traulitada na cabeça do coitado. Isso garantia mais três ou quatro dias de sossego. Não é difícil imaginar que o perigoso estilo de vida levou à quase extinção da pequena comunidade. Em um ano ou dois, mataram-se ou foram mortos todos os aldeões. Sobraram Ug! e Tulah. Hoje não sabemos se foi por pura falta de opção ou se por amor, mas o fato é que o casal procriou e a maior prova sou eu.
            Milhão e meio de anos depois e às duas da manhã, me pego sentado em minha poltrona perfeita, com um pacote de Doritos no colo, uma caixa de Bis e seiscentos mililitros de coca-cola zero. Enquanto assisto ao exdrúxulo Dr. Rey vender sua claustrofóbica Shapewear, reflito sobre a esperteza de meu paleo-avô. Num mundo de tigres e mamutes, a estratégia de sobrevivência de vovô Ug! foi vencedora. O problema é que ela nunca previu a existência de invisíveis predadores moleculares como o colesterol e os triglicérides. Vovô Ug! que me desculpe, mas é preciso renegar sua herança genética, calçar tênis, bermuda e camiseta e sair da caverna com maior freqüência...

domingo, 21 de agosto de 2011

POMBAS NÃO LIGAM PARA BENS MATERIAIS

Antes, um preâmbulo. Às vezes o universo conspira a nosso favor. Uma combinação de boa educação, trabalho duro e a companhia perfeita me levaram a Paris no último mês de julho. Dias perfeitos com longas caminhadas na cidade mais bonita do mundo. Dentre os destinos na Cidade Luz, o complexo de tênis de Roland Garros, um antigo sonho. Na loja do complexo, busco pelos inevitáveis souvenirs. Acabo comprando, entre outras bugigangas, um belíssimo casaco impermeável azul escuro com um pequeno logo do tradicional templo do tênis. Vou embora feliz da vida. Fim do preâmbulo.
            E então chegamos a esta gelada primeira semana do mês de agosto, mais especificamente a uma quinta-feira que amanheceu siberiana. Após um café fumegante e fundamental, tomo um banho escaldante e vou me vestir. E foi então que tive um surto de arrogância pequeno burguesa: vou usar meu fantástico casaco francês. As pessoas vão achar bonito e perguntar “Nossa! Que casaco bonito! Onde você comprou?” e Eu, soberbo, vou cravar: “Paris”. E foi com esse casaco perfeito e este pensamento ridículo que parti para o trabalho.
            Após o almoço, meu amigo Miller resolveu tomar um sorvetinho. Rejeitei a guloseima gelada num dia tão frio, mas sentei-me ao seu lado no banco da sorveteria, sob as árvores peladas, para fazer companhia e curtir um solzinho gostoso. Enquanto discutíamos bolsas, projetos, artigos científicos e o namoro de Rodrigo Santoro com J-Lo, recebi uma lição de humildade bíblica. Uma pomba muito precisa conseguiu, a uns seis metros de altura, acertar um jato de fezes em meu ombro. Fugi para o banheiro sob uma salva de gargalhadas, para salvar meu casaco e minha dignidade. Em frente ao espelho, esfregando papel higiênico molhado sobre o local atingido, filosofei. Pombas não ligam para bens materiais. Talvez seja por isso que em toda imagem de São Francisco de Assis, o mais humilde dos santos vem sempre acompanhado de dois ou três desses bombardeiros penosos.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

AO MEU PAI, PELO PRIMEIRO ANIVERSÁRIO DE SUA MORTE

Dia doze será uma sexta-feira, motivo pelo qual esperarei o dia seguinte para celebrar o aniversário da sua morte. Vou transformar a manhã de sábado num ritual pagão, onde cada gesto terá um significado superior, litúrgico e sagrado. Tudo será pensado em sua homenagem e todos meus pensamentos estarão contigo.
            Vou acordar às seis horas e buscar pão na padaria Santo Antônio. Oito para ser preciso. Passarei uma generosa camada de manteiga Aviação em um deles, colocarei dezoito gotas de Zerocal na caneca de porcelana que suas netas lhe compraram em Parati e vou preenchê-la com um quarto de leite desnatado bem quente e três quartos com o café que sua mulher há de preparar. A mesma mulher que vai respirar fundo em desaprovação quando eu espanar a mesa com os dedos, jogando as migalhas no chão. Com a caneca na mão, vou abrir o portão da frente e olhar o céu que haverá de estar muito azul. Será inevitável lembrar-me das pombas, que você criava com tanto esmero. E então será inevitável também chorar.
            Vou enxugar o rosto com as costas das mãos e seguir para seu quarto, que agora uso aos fins de semana. Vestirei shorts, camiseta e tênis. Irei ao parque. Correrei em ritmo forçado cinco quilômetros a mais que o habitual. Sentirei o coração e os vasos sanguíneos pulsarem, a respiração forçada e ouvirei meus passos rápidos. Sentirei também o gosto salgado do suor em meus lábios. E então lhe agradecerei em silêncio, pois esta máquina em funcionamento abusado é um projeto inconsciente seu, que começou há quarenta anos.
            Voltarei para a casa da sua mulher e abrirei uma lata de cerveja muito gelada. E então me lembrarei das incontáveis ocasiões mágicas em que compartilhamos o delicioso líquido amarelo em nossos churrascos a dois. Quinhentos gramas de contra-filé, vinte e quatro latinhas, confidências, recordações e planos. Depois, o sono turbulento entremeado por encontros à porta da geladeira, disputando a garrafa de água gelada. Juras nunca cumpridas de nunca mais fazer aquilo.
            E então, vou acordar sua neta. E, enquanto ela escovar os dentes, vou segurá-la pelos ombros, beijá-la na testa e fitar longamente seus olhos azuis. Os seus olhos azuis. E então vou chorar uma última vez, dobrar minha dor e guardá-la numa velha caixa de charutos, junto outras lembranças doces e sofridas e trancar a sete chaves em meu córtex cerebral. Tomarei um banho purificador para lavar o sal das lágrimas e da transpiração. Encerrarei o culto matinal perguntando para sua mulher o que teremos para o almoço.

domingo, 7 de agosto de 2011

CARIDADE ETÍLICA

Naquela época eu já acordava muito cedo e tinha um Del Rey 1984 cinza, duas portas, série prata a álcool. Numa segunda de manhã - como em todas as outras, impacientemente eu dei a partida, puxei o afogador e esperei o motor do bólido esquentar. Aproveitei este intermezzo para tomar uma caneca de café junto ao portão já escancarado da garagem. Enquanto sorvia o aroma da droga líquida, negra e fundamental, eu cumprimentei os vizinhos. Foi então que ele apareceu pela primeira vez. Como qualquer profissional, os anos na mendicância lhe apuraram a técnica. Timming perfeito na abordagem e expressão convincente de necessitado. Irresistível não colaborar.
            Claro que a ruína alcoólica ajudava e muito a despertar a piedade. Olhos amarelos, sonolentos, barriga inchada num corpo muito magro. Apesar do frio, calçava chinelos apertados para os pés enormes, como pães Pullman. Num fetichismo mórbido, verifiquei que as poucas unhas que sobraram descolavam dos dedos. Um boné da Caixa Econômica Federal achatadíssimo pendia sobre a cabeleira indômita e imunda. Igualmente imundas eram a bermuda muito larga e a camiseta Hang loose. Se não fosse a cana, a imundície e a ruína física, passaria muito bem por surfista. E foi exatamente enquanto eu ria deste pensamento descabido que ele disparou, abusando dos diminutivos e tremendo muito:
- Bom dia, Doutor. Será que o senhor não teria um cruzadinho para eu tomar um cafezinho e comer um pãozinho?
Hesitei uns três segundos. Disse:
-Peraí.
            Antigamente, o requeijão cremoso vinha em copos de vidro que, uma vez consumido o conteúdo, eram bem lavados e usados para tomar água, refrigerante e etc. Adoro requeijão, portanto tinha muitos destes copos. Enchi um deles com duzentos e cinqüenta mililitros de uma cachaça que comprara num alambique em Lençois Paulista e que mantinha num corote de carvalho. Coisa fina. Levei para o pobre diabo. Sofregamente ele tomou metade do conteúdo. O resto ele foi sorvendo vagarosamente, no mesmo ritmo e com a mesma expressão de prazer que eu bebia meu café. Quando terminou, me devolveu o copo, agradeceu e subiu a rua:
- Deus te abençoe. Bom dia pro senhor.
            O mesmo ritual repetiu-se sem nenhuma mudança na terça e na quarta. Na quinta, o corote já estava vazio. Enchi o copo com uma cachaça que estava no garrafão e ainda não tinha passado pelo processo de envelhecimento no tonelzinho de carvalho e levei para o meu amigo. Foi então que reparei uma mudança no ritual. Após tomar sua dose, devolveu o copo e não me deu a bênção e o bom dia habituais. Apenas acenou com a cabeça e partiu.
            Na sexta, não apareceu. Fiquei na porta, com meu café e o barulho do motor esperando meu amigo cachaceiro. Enchi-me de culpa: onde já se viu dar pinga para um alcoólatra? Minhas doses matinais acabaram de arruinar o homem. Sumiu porque morreu. Seu Matias, antigo funcionário da prefeitura, varria a rua e perguntou:
-Seu amigo não veio hoje?
-Não, Seu Matias. Acho que matei o homem de tanto dar cangibrina para ele.
            O velho parou seu trabalho, colocou a grande vassoura de bambu na vertical e apoiou o queixo. Coçou a cabeça por baixo do grande chapéu de palha e disse:
-Pois eu acho é que ele não gostou da branquinha...

domingo, 31 de julho de 2011

HAMSTERS SOBRE DUAS RODAS


            Posso estar enganado, mas Laerte e Paragua tinham uma BMX pantera cada. Delba, uma Monark arco-iris. Álvaro, uma belíssima e bem cuidada caloi extra nylon azul. Taits e Kiko tinham calois extra light cor de vinho, com freios e rodas de alumínio . Cláudio tinha uma exótica calói tigrão, preta com a estampa do banco imitando a pele do animal. Meu primo sapo tinha uma extra nylon cromada com os raios pretos que ele quebrou no mesmo dia em que ganhou, ao saltar a escadaria da igreja de Mineiros do Tietê. Doido. Eu tinha uma Brandani cross marrom metálica com dois amortecedores traseiros e freios nos pés. O banco era comprido e afilado como um concorde, no melhor estilo Chopper. Igual à minha, só a do Pedro. Mas a dele era azul. Para saber se o moleque estava em casa, bastava olhar pela fresta do portão. Se sua bicicleta estivesse na garagem, ele estava. Se não, não adiantava nem chamar. Chamar sim, porque nunca usávamos a campainha. Sem descer da bicicleta, Gritávamos seu nome, sempre oxítonos:- Fulan-Ô! Aonde vamos? Do Caiçara à Coopersucar, Da Fazenda Morro Vermelho à Estação Ferroviária. Peter Fonda e Dennis Hopper, sem destino. A bicicleta, uma extensão do moleque. Ou vice-versa.
            Claro que não é a mesma Brandani cross, mas passados mais de vinte e cinco anos, tenho minha magrela tunada. Numa manhã de domingo destas, fui dar uma volta na ciclovia. Por decreto, em dia e hora estipulados, uma das faixas da avenida é toda reservada aos ciclistas. Entrei no fluxo. Um guarda municipal sorridente e solícito parou os autos nas demais faixas da avenida para que eu pudesse cruzar em direção ao Parque. Cinco quilômetros depois, saí de lá incomodado e fui pedalar nas ruas do Centro. Sim, a ciclovia é uma beleza. A família pedala em segurança, estimula a prática da atividade física. É uma ótima opção de lazer. Pode ser, mas para mim a bicicleta nunca foi brinquedo nem aparelho de ginástica. Solenemente me recuso a sair para pedalar e passar duas vezes no mesmo lugar.

domingo, 24 de julho de 2011

A INFANTARIA ROMANA E A COPA AMÉRICA

O grande exército romano foi praticamente invencível durante toda antiguidade clássica graças à sua disciplina e treino. Era capaz de assumir diversas configurações, de acordo com as exigências da batalha. Muitas destas configurações eram defensivas. Na formação conhecida como “tartaruga”, por exemplo, os legionários formavam um retângulo ou quadrado com os homens de frente mantendo o escudo na vertical enquanto que os demais posicionavam seus escudos na horizontal formando uma espécie de teto. A “tartaruga” era particularmente eficiente para evitar ataques de projéteis como flechas e lanças. Convenhamos que os soldados haviam de ter colhões para receber aquela saraivada e não debandar.
            E era esse tipo de virtude que eu achava ver nas seleções futebolísticas de menor tradição. Na fase de grupos da enfadonha Copa América, times como Bolívia, Venezuela, Peru e etc entraram em campo com a proposta de segurar a onda durante noventa minutos, depois mais trinta para só então tentar a sorte nos pênaltis. Nos primeiros jogos eu estava empolgado com o clima criado em torno da competição: o Brasil tentando seu tri, a rivalidade com a Argentina e o sempre brigador futebol uruguaio. Então vieram os jogos da primeira rodada e foi aquele festival de empates. Foi quando eu decididamente passei a desprezar este tipo de estratégia. Ao contrario dos romanos, a estratégia “tartaruga” no futebol é irritante. Explico.
            O Paraguai corre o risco de ser campeão sem ganhar uma única partida na competição. Muitos podem louvar a disciplina tática, a marcação cerrada, enfim, achar que nossos vizinhos guaranis são legionários romanos em formação “tartaruga”. Não são. Os antigos romanos, quando assumiam essa configuração, aproveitavam o intervalo enquanto os arqueiros ou lanceiros inimigos aprontavam o novo disparo para avançar preciosos passos em sua direção. Pacientemente, seis ou sete saraivadas depois, lá estavam eles dizimando os bárbaros com suas espadas curtas no glorioso combate corpo a corpo. Na estratégia tartaruga do futebol Copa América, agüentar cento e vinte minutos pode, no máximo, levar à aleatória e ridícula vitória nos pênaltis.

domingo, 17 de julho de 2011

COISAS MUITO ESTRANHAS ACONTECEM EM PETÚNIAS

            Petúnias, ao norte do estado, é uma beleza só. Trata-se de uma cidadezinha de uns dez mil habitantes cujo núcleo central de construções - que inclui prefeitura, câmara municipal e igrejinha, segue o trajeto sinuoso de um rio pequeno mais muito limpo e turbulento, também chamado “Rio Petúnias”. Com o crescimento econômico que o turismo trouxe à cidade, os muito ricos ou os muito pobres (os primeiros pela bela paisagem e os segundos pela necessidade mesmo) trataram de construir suas residências nas encostas dos morros ao longo do vale do rio. Os hotéis também ficam nestas encostas e costumam receber hordas de turistas, especialmente senhoras da terceira idade que ali chegam atraídas pelo clima ameno, águas medicinais e um artesanato muito delicado, feito com cascas de ovos e tradicional da região. Sem dúvida, Petúnias é um pequeno paraíso bucólico - e isso todo mundo sabe.
            Infelizmente, o que ninguém sabe, é que uma coisa muito estranha acontece no restaurante do “Grande Hotel Alpino”, um dos mais antigos e procurados daquela cidade. Explico. No estupendo jogo de talheres de prata do GHA há uma colher de sopa que é única nas reações sinistras que é capaz de provocar na pessoa que a manipula, mas indistinguível das demais pela aparência. Ninguém sabe disto, mas o que descrevo sempre acontece com a primeira mulher com mais sessenta anos que, no mês de maio de um ano bissexto, toma sopa de ervilhas no jantar com a referida colher. Quando isso ocorre, por mais pacata que seja, a senhorinha acaba tomada por um ímpeto irrefreável de assassinar alguém. Esta estranha sina, lei da natureza, maldição ou sei lá o que, manifestou-se pela última vez em Dona Dolores, em maio de 2008, na forma que relato a seguir.
            A viúva Dolores, aposentada de 63 anos, chegou a Petúnias naquele ano com seu grupo de danças de salão do SESC para passar o fim de semana. Fez check in às 16:00, foi para o quarto, desfez as malas, tirou as sandálias, calçou pantufas e ficou tricotando até a hora do jantar. Desceu exatamente às 17:50 e ficou esperando o restaurante abrir. Suas amigas de SESC chegaram depois e furaram a fila, entrando junto com dona Dolores. Sem saber da nada (como saberia?), a velha senhora pegou a malfadada colher e com ela tomou justamente a sopa que não poderia: a de ervilhas. Após a sopa, comeu iscas de peixe com arroz à grega e molho tártaro. Finalizou a refeição com um delicioso doce de leite cremoso com queijo fresco. Gostou tanto que colocou um pouco do doce num copo plástico para comer mais tarde, lembrando-se de levar uma colherzinha plástica junto. À noite, o grupo todo passeou pelas ruas principais de Petúnias para comprar as famosas lembrancinhas de cascas de ovos e, às 21:40 retornaram ao Grande Hotel Alpino. Dona Dolores tirou a roupa de sair, vestiu um pegnoir novo muito florido que definitivamente não combinava com as pantufas. Tirou as dentaduras e, enquanto fazia a higiene bucal, veio a irrefreável vontade de assassinar.
            Voltou ao quarto, sentou-se na poltrona e não pegou o tricô. Tomou em suas mãos o delicado bibelô feito de cascas de ovo que adquirira naquela noite e fitou-o durante longos minutos. Devolveu o objeto ao seu lugar de origem levantando-se rapidamente, como quem toma uma resolução. Foi até o banheiro, desatarraxou uma das lâmpadas da luminária do espelho, cobriu-a com a toalha de rosto, colocou no chão e pisou muitas vezes até não mais ouvir barulho de vidro quebrado. Com a colher plástica, recolheu o vidro moído e colocou tudo no copinho como o delicioso doce de leite. Misturou tudo muito bem, até ficar bem homogêneo. Era tarde, mais não importava. Bateu à porta do quarto de Dona Eda, vizinho ao seu. Disse à amiga que ela não poderia dormir sem provar aquela delícia. A roliça dona Eda não dispensava uma boquinha e não foi preciso falar duas vezes para que a ela comesse tudinho. Dona Dolores despediu-se levando consigo a colherzinha plástica e o copinho vazio. Durante o café no dia seguinte, todo o grupo estranhou ausência de Dona Eda. Avisaram o gerente que abriu o quarto com a chave reserva. A cena foi chocante. A velha senhora jazia imóvel na cama, de costas para o colchão. Um grande círculo vermelho tingia os lençóis outrora muito brancos e limpos. Acabou-se o passeio e o grupo foi embora de Petúnias.
            Todos, inclusive a polícia, acharam que foi morte natural. Só Dona Dolores e nós, que conhecemos o misterioso fenômeno da colher de prata do GHA, é que sabemos o que realmente aconteceu. Mas o que intriga nesta história é a maneira rápida, ardilosa e, arrisco dizer, profissional como a velha senhorinha executou sua sina. Conhecendo Dona Dolores como só eu conheço, diria que ela cogitou utilizar o bibelô para executar seu plano fatal, mas vacilou ante a graciosidade do objeto. Finalmente, a nós resta esperar:
1-Que o Grande Hotel Alpino resolva trocar seu faqueiro.
2-Que o Grande Hotel Alpino resolva não fazer sopa de ervilhas em maio de 2012.
3-Caso 1 e 2 não ocorram, que nunca uma senhora tão competente na arte de matar cruze o caminho da colher maldita.

domingo, 10 de julho de 2011

A SEGUNDA-FEIRA DE SEU DOMINGOS

Acordou sem a ajuda do despertador. Era a primeira vez em incontáveis anos que uma segunda-feira começava sem o alarme estridente do rádio relógio. Ainda deitado, sorriu para o teto com a idéia de que ele e o escandaloso aparelho aposentavam-se no mesmo dia. Virou-se de lado e assumiu uma posição fetal abraçando-se ao antigo travesseiro da esposa. Deste ângulo o lugar vago da companheira parecia uma vasta planície. Depois da linha do horizonte, vislumbrou o porta-retratos com as fotos dos filhos distantes. Percebeu que, se ficasse mais dois segundos nesta posição, começaria a sentir pena de si mesmo. Voltou a ficar de costas no colchão e, num único impulso, girou os pés para fora da cama e ficou sentado. Calçou os chinelos de borracha novos em folha: um auto-presente para comemorar a nova fase da vida. Não eram as Havaianas a que estava acostumado, mas eram bem parecidas e mais baratas. Agora precisava adequar o orçamento à minguada aposentadoria.
            Como havia dormido de bermudas, levantou-se e vestiu apenas a camisa. Abotoou-a só até a altura do umbigo e colocou no bolso o cartão de beneficiário do INSS juntamente com as contas de água e de luz. Nos bolsos da bermuda pôs o pente Flamengo e um lenço. Passou um cafezinho sem-vergonha para ajudar a engolir três bolachas cream cracker. Cozinhou al dente meio pacote de macarrão chumbinho, misturou com meio pacote de fubá mimoso e guardou tudo num velho pote de margarina vazio – era a melhor isca para lambaris que conhecia. Colocou alpiste e trocou a água dos pássaros. Foi ao quartinho e pegou a varinha de bambu e uma pequena bolsa com as tralhas de pescaria. Antes de sair, pôs seu velho boné da Caixa Econômica Federal. Apesar da chuva do dia anterior, o dia amanhecera aberto e sol já estava implacável às nove horas da manhã.
            Passou na lotérica, recebeu o benefício, fez uma fezinha na Loto fácil e pagou água e luz. Cruzou com amigos da prefeitura que gracejaram com ele “Cadê o uniforme, Seu Domingos?”. “Pode fazer o maior frio do mundo que eu nunca mais uso botas nem calças”, respondeu. Não levava lanche porque pretendia almoçar em casa. A barranca do rio ficava a apenas cinco quilômetros de distância, por isso foi a pé. Ao chegar, foi descendo devagar a encosta úmida e escorregadia, mas as tiras do chinelo não resistiram e soltaram-se da sola. Escorregou, caiu na água e afundou. Foi encontrado flutuando dois dias depois e quatrocentos metros rio abaixo. Foi reconhecido pelo cartão de beneficiário do INSS que ainda estava no bolso da camisa. As contas de água e luz provavelmente desmancharam-se na água. Sobre o pente e o lenço nada se sabe, pois o rádio nada divulgou sobre o conteúdo dos bolsos da bermuda.
            A triste história de Seu Domingos não mereceria a pena ser contada não fossem as três incríveis ironias relacionadas a ela, a saber:
- Primeira ironia: um homem morreu em seu primeiro dia como aposentado.
- Segunda ironia: “Seu Domingos” morreu numa “segunda”.
- Terceira ironia: se Seu Domingos tivesse comprado Havaianas, que todos sabemos não soltar as tiras, ele não teria morrido.
            Mais o mais incrível mesmo não são as ironias tristes. Incrível é uma pessoa ter a cara de pau de achar que é Albert Camus e publicar uma história dessas...

domingo, 3 de julho de 2011

UM ALIMENTO HIPÓCRITA

      Aquele que tenta explicar o irracional corre o risco de parecer mais doido que o Fanfula. Pior ainda quando o assunto explicado é irrelevante e não passa de uma implicância gastronômica pessoal. Mas não importa. Como disse uma vez o fictício príncipe da Dinamarca, “É loucura, mas há método nisso”. Eis o método: um parágrafo sobre o churrasco, outro sobre os legumes e o parágrafo final sobre a pipoca.
   Primeiramente, considere o churrasco. O churrasco é simplesmente impressionante. Sente-se o aroma antes de comer e após esfalfar-se com os nacos bovinos, você percebe que traçou algo divino. Grandes expectativas olfativas são devidamente preenchidas no primeiro pedaço comido. Honestidade. Como bônus, agrega-se a família, tem-se a companhia dos amigos, cerveja direto da latinha e, vá lá, o dispensável pagodinho. Repare que, entre os mais abastados, o pagodinho dá lugar ao DVD dos BeeGees numa TV de LCD de 42 polegadas. Igualmente dispensável.

      O parágrafo antes da pipoca diz respeito aos legumes. O legume, cru ou cozido é absolutamente sem graça. Os legumes simplesmente não têm cheiro ou, se o tem, é invariavelmente ruim, sulfuroso. Quem come, come por motivos nutricionais apenas. Você come um legume porque sabe que faz bem e pronto. Você come um legume por senso de dever. Quem, como eu mesmo, fala que gosta de legumes simplesmente se acostumou com eles. Mas não há como negar, há uma relação honesta entre você e o legume. Ele não cheira, ele não promete nada pra você.
     Agora a pipoca. Não há como negar, o cheiro é inebriante. Entrar no cinema, sentir o aroma ou escutar aquele poc poc poc da pipoca estourando já faz nossas glândulas salivares trabalharem a mil por hora. Ludibriado pelo olfativo canto da sereia, acaba comprando um pacotaço desta porcaria, que nos cinemas custa uma fortuna, verdadeiro assalto. Confortavelmente instalado na sua poltrona com uma coca gigante e o enorme saco do desprezível alimento no colo, você experimenta o negocinho gordurento de tanta manteiga e se dá conta da besteira que fez. Pipoca é pura falsidade. Pelo cheiro, acha que é a maior delícia, mas ao comer percebe que não tem gosto de nada. É só sal, manteiga e aquela textura de isopor. Corre-se ainda o risco de acabar com suas obturações num acidente com um peruá. Churrasco promete e cumpre. Legume não promete nada, mas faz bem. Pipoca é hipocrisia pura e ainda engorda.